Roberto Sadovski

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Opinião

'Anatomia de Uma Queda': Sandra Hüller desafia nossa moral em drama ambíguo

Em um dos (muitos) pontos altos de "Anatomia de Uma Queda", a escritora Sandra Voyter, em julgamento pelo assassinato de seu marido, rebate as evidências de uma relação estremecida como motivação para o crime. Ela diz que um trecho de gravação ou uma frase sublinhada em uma de suas obras não representa a natureza de seu casamento. A verdade é mais complexa que um mero recorte.

Essa verdade, contudo, não parece interessar à diretora Justine Triet, que assina o roteiro com seu marido, Arthur Harari. "Anatomia de Uma Queda", apresentado como híbrido de drama de tribunal, mistério de assassinato e estudo de personagem, não é um filme em busca de respostas, e sim um convite para elaborar perguntas. Os fatos — um homem morto, uma mulher suspeita — sugerem uma direção que logo Triet trata de perverter.

O ponto de partida é a "queda" do título, que pede uma leitura tanto literal quanto alegórica. O filme começa em conflito, quando Sandra Voyter (interpretada por Sandra Hüller) interrompe uma entrevista com uma estudante por conta da música altíssima que seu marido, Samuel (Samuel Theis), toca em outro cômodo.

A tensão é clara. Mais tarde, o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), volta de um passeio para encontrar o corpo sem vida do pai, estatelado abaixo da janela do sótão. O que parece à primeira vista um acidente, é em seguida sugerido como suicídio e termina como investigação de assassinato, tendo Sandra como principal suspeita.

Ao remover camada por camada do relacionamento, exposto sem pudores no julgamento subsequente, Triet desnuda o que uma vida a dois pode esconder. Diretora confiante e de pulso firme, ela encaixa as peças narrativas em um quebra-cabeça que teima em parecer incompleto.

À frente do mistério, a excepcional Sandra Hüller traz uma atuação calibrada em manter a incerteza. Quanto mais ela revela sua intimidade, mais as circunstâncias se afastam de uma conclusão.

É uma interpretação brilhante, um personagem marcada por uma expressão impávida que dissimula sua intenção ao flertar com emoções. Em um trabalho dramático de extrema complexidade, Hüller constrói um espelho desconcertante que, ao tomar partido, nos faz questionar nossa própria moral.

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"Anatomia de Uma Queda" vai além, adicionando à mistura uma dinâmica de discussão de gênero que flutua no zeitgeist. Em um texto nunca melodramático ou exagerado, a diretora levanta sutilmente questões que brincam com nossa própria percepção. Se fosse um homem sendo julgado, ele teria o mesmo tratamento?

A acusação buscaria desqualificar o réu não por evidências, e sim por padrões de comportamento? A essa altura, Justine Triet sabe exatamente a extensão do impacto de suas decisões. Curiosamente, ficamos nos perguntando o impacto da decisão do comitê responsável pela escolha do representante francês para o Oscar, que preteriu "Anatomia de Uma Queda".

Sua opção, o drama "O Sabor da Vida", terminou sem lugar na festa. Vai entender. Premiado com a Palma de Ouro em Cannes ano passado, o filme de Justine Triet foi lembrado não só na categoria principal, como também concorre a melhor direção, roteiro, atriz e montagem.

É a consagração de uma obra complexa, que traz histórias superpostas a histórias em uma estrutura narrativa brilhante. Um filme que ousa perverter os dramas de tribunal ao tornar irrelevante um veredito de culpado ou inocente. O que Justine Triet propõe com "Anatomia de Uma Queda" é uma experiência em que respostas são filetes de uma verdade que só faz sentido quando a forçamos a fazer. Quem nunca?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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