'A Cor Púrpura': versão musical suaviza a violência para celebrar a vida
Steven Spielberg hesitou ao dirigir sua adaptação de "A Cor Púrpura" em 1985. Além da pressão em acertar o tom de um texto dramático, especialmente com uma carreira erguida no cinema fantástico, havia o óbvio distanciamento em relação ao material: a jornada de uma jovem negra, submetida a todo tipo de sofrimento, no sul dos Estados Unidos na primeira metade do século 20.
Não deixa de ser irônico, portanto, ver a obra de Spielberg como influência maior para essa visão atualizada do livro de Alice Walker. Este novo "A Cor Púrpura" adapta para o cinema a versão musical da história, levada à Broadway, em 2005. Tal qual o filme dos anos 1980, ele se esquiva dos aspectos mais polêmicos do texto original para se apresentar como uma história de superação, suavizada ainda mais pela trilha musical.
Nada disso, contudo, desmerece a produção. Dirigida por Blitz Bazawule, que trabalhou com Beyoncé em "Black Is King", a nova visão prova que o material original é brilhante o bastante para superar quaisquer reservas. É uma versão atenuada de temas pesados, como racismo, machismo, misoginia e abuso, conduzida por meio da música como uma história de amor, resiliência e redenção. É, acima de tudo, entretenimento.
Com isso em mente, a adição de canções se mostra o caminho ideal para evitar que "A Cor Púrpura" se torne uma fetichização do sofrimento. Se o filme de Spielberg tinha mais fibra por ele ser um diretor mais completo, Blitz tem o material original mais perto do peito. Seu trabalho é menos distante e mais apaixonado, evitando as armadilhas do sentimentalismo, mesmo que o nó na garganta seja inevitável.
"A Cor Púrpura" começa com as irmãs Celie (Phylicia Pearl Mpasi) e Nettie (Halle Bailey), que buscam fragmentos de felicidade uma na outra em um ambiente violento e abusivo na Geórgia do começo do século passado. Depois de ter seu segundo filho tomado de si, fruto de uma relação forçadamente incestuosa, Celie é vendida pelo próprio pai para o intrusivo Mister (Colman Domingo).
É o começo de um calvário que se estende por décadas, piorado depois que Nettie, fugindo do alcance do pai abusivo, é expulsa da casa de Mister ao recusar seus avanços sexuais e desaparece da vida da irmã. Nos anos seguintes, Celie experimenta todo tipo de humilhação por seu marido/proprietário, tornando-se a casca de uma mulher, submissa por inércia, arrastando-se pelos segundos da vida.
Nos anos seguintes, ela testemunha o poder de uma mulher que se impõe, a afrontosa Sofia (Danielle Brooks), e de outra que transforma sua liberdade em inspiração, a cantora de jazz — e ocasional amante de Mister — Shug Avery (Taraji P. Henson). Ao conhecer força e independência, e também afeto e amor-próprio, Celia, agora interpretada por Fantasia Barrino, enxerga um caminho para sua própria emancipação.
É compreensível o esforço dos produtores Oprah Winfrey, Steven Spielberg e Quincy Jones para capitanear esse salto de volta ao cinema para "A Cor Púrpura" e manter a história viva a cada geração. Se o filme perde na comparação com o tsunami emocional do original, Blitz Bazawule criou uma versão sólida, arquitetada para o público moderno e alinhada com o atual momento cultural.
Ao expandir e adaptar nacos do livro, usando a estrutura do filme dos anos 1980 e boa parte das canções do musical, o diretor arquitetou mudanças que fazem sentido com a nova proposta. Adequando o ritmo do texto ao gênero, ele resolve boa parte do fluxo narrativo com números musicais, disfarçando a violência física e mental em momentos lúdicos.
O resultado é uma celebração do legado de Alice Walker e da cultura de um povo, sua luta e resistência. As modificações sutis a cada adaptação mostram uma obra orgânica, que evolui à medida que é reinterpretada por outros artistas e acolhida pelo público. Mas o centro emocional de "A Cor Púrpura", a jornada pessoal de Celie, permanece intacta.
O elenco não menos que espetacular é essencial para conduzir a experiência. Fantasia Barrino, vencedora da terceira edição do American Idol, interpretou Celie em uma temporada da peça e repete aqui o papel com fibra, marcando também sua estreia no cinema. Ela é acompanhada de Danielle Brooks, uma artista bárbara, que também faz a migração do musical para o filme ao dar vida a Sofia.
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Quero receberSe Taraji P. Henson faz de sua Shug a materialização da liberdade, e de quebra recupera a canção "Miss Celie's Blues (Sister)", ausente do musical da Broadway, Colman Domingo solidifica seu magnetismo irresistível e assustador como o violento Mister. Eles sustentam uma reunião de talentos que impede os momentos mais emotivos de se render ao melodrama.
E pensar que, à época do lançamento de sua versão, Spielberg foi duramente criticado por adocicar o texto de Alice Walker e mergulhar no sentimentalismo. Bobagem. "A Cor Púrpura" não precisa, nem antes, nem agora, explicitar a violência de seus temas para refletir sobre a violência histórica contra mulheres e o poder transformador do amor. É piegas? Sim. Mas é também uma experiência vibrante que ilumina as sombras que por vezes encobrem a vida.
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