Roberto Sadovski

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Opinião

Ambicioso e espetacular, 'Ferrari' explora o alto custo da imortalidade

No verão europeu de 1957, Enzo Ferrari equilibrou sua atribulada vida pessoal com a preparação para uma corrida tradicional que poderia salvar da ruína a escuderia carregando seu nome. Ao volante, pilotos arriscavam a vida, seduzidos pela promessa de glória eterna, em caixas de metal que ofereciam proteção zero. O que justificaria esse flerte tão explícito com a morte?

Dirigido com paixão abnegada por Michael Mann, "Ferrari" não oferece uma resposta. Em troca, o filme traz uma reflexão sobre a acidez da masculinidade - uma necessidade quase juvenil, por vezes inconsequente, de materializar a abstração da conquista. De deixar um legado. De garantir, não importa o custo pessoal, um lugar para seu nome na história.

Para Enzo Ferrari, o caminho para a imortalidade estava na Fórmula 1. Piloto em sua juventude, ele passou a construir carros de corrida ao final da Segunda Guerra Mundial - a comercialização de carros esportivos com o selo da escuderia começaria já nos anos 1950, num esforço para financiar os eventos esportivos, claramente uma obsessão pessoal.

"Ferrari" traz um recorte desse período, quando Enzo busca novos pilotos para competir na Mille Miglia, tradicional corrida de rua na Itália, notória pelo alto risco e pela altíssima soma de fatalidades ao longo de sua história. Uma vitória, acredita o empresário, traria a atenção necessária para sedimentar a venda de novos carros e manter sua política de nunca vulgarizar sua marca com uma produção em massa.

Gabriel Leone pega no volante em 'Ferrari'
Gabriel Leone pega no volante em 'Ferrari' Imagem: Diamond

O glamour e a empolgação das pistas, entretanto, é a perfumaria que adorna "Ferrari". O coração da trama busca entender a raiz de sua determinação, desenhada no tabuleiro intrincado de sua vida particular. O tom certo para combinar drama familiar e fita de ação depende do equilíbrio entre empresário determinado e figura humana imperfeita, equação que encontra na interpretação de Adam Driver uma âncora para integrar as diferentes narrativas.

O ator exterioriza com talento o ímpeto de um homem de negócios implacável que fracassa na tentativa de fazer com o que seu mundo particular se curve ante seus caprichos. Até porque Ferrari leva uma vida dupla, mantendo o casamento tempestuoso com Laura Garello (Penélope Cruz), ao mesmo tempo em que busca um semblante de normalidade no relacionamento com a amante, Lina Lardi (Shailene Woodley).

O elo final da arquitetura intrincada de "Ferrari" é o piloto espanhol Alfonso de Portago, novato que transborda entusiasmo para representar a escuderia e sua imagem de beleza e sofisticação. É um papel de vulto defendido com pleno domínio dramático pelo brasileiro Gabriel Leone, que por coincidência volta às pistas ainda este ano na minissérie "Senna".

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Adam Driver e Penélope Cruz em 'Ferrari'
Adam Driver e Penélope Cruz em 'Ferrari' Imagem: Diamond

Nem sempre a fórmula encontra harmonia, e o filme por vezes abdica de explorar a complexidade de seus personagens para que a trama não perca seu impulso - especialmente quando o mundo exterior ao conflito doméstico ameaça desandar o ritmo da história.

Como consequência, fica em segundo plano a abordagem da culpa que paralisa o empresário em suas obrigações como marido e também como pai - seu filho com Laura morreu ainda criança, e ele hesita em assumir seu único herdeiro, fruto da relação com Lina. A habilidade e a precisão de Mann em manter todos os pedaços de seu filme no mesmo tom, contudo, compensam os eventuais atropelos.

Vem do pulso do diretor, e da clareza com que ele aborda o material, uma correção de curso ao integrar o drama doméstico à crise experimentada pela escuderia. Seu talento em dirigir atores, em especial uma Penélope Cruz particularmente inspirada, injeta humanidade em uma história que celebra, por fim, a simbiose entre homem e máquina.

O diretor Michael Mann (em pé à esq.) comanda as filmagens de 'Ferrari'
O diretor Michael Mann (em pé à esq.) comanda as filmagens de 'Ferrari' Imagem: Diamond

O terceiro ato de "Ferrari", que traz a corrida de Mille Miglia, é um convite para interromper a respiração e se equilibrar na ponta da poltrona. Privilegiando efeitos práticos, Mann cria uma sequência tão empolgante quanto tensa, cada etapa da prova reconstruída em seus detalhes aterrorizantes para nosso deleite cinematográfico.

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É também nesse clímax que o filme abraça o flerte com a morte e o jorro de adrenalina subsequente, com carros cruzando estradas vicinais e paisagens urbanas com zero consideração por qualquer um, pilotos e espectadores, que esteja no caminho. Na visão de Michael Mann, é este o momento em que as vidas paralelas de seu protagonista se entrelaçam.

O ímpeto pela vitória a todo custo faz de Enzo uma figura tão fascinante quanto repulsiva. É esse o dilema que conduz "Ferrari" como uma jornada para materializar um sonho inalcançável. Uma obra que por vezes não acompanha a velocidade de seus próprios anseios, mas que traz uma ambição tão pulsante que, como seu protagonista, não pode ser ignorada.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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