Nada se salva no inerte e incompetente 'Godzilla e Kong: O Novo Império'
Eu só queria ver monstros saindo no braço. Ok, não era "só" isso. Cinema não é videogame, e para uma história existir, para justificar a briga entre titãs, é preciso colocar peças em seu devido lugar. Um bom roteiro. Personagens bem motivados. Uma trama que, mesmo fantástica, faça algum sentido. E emoção, elemento que transcende a técnica e tempera a coisa toda.
"Godzilla e Kong: O Novo Império" podia saciar essa vontade. Em vez disso, a megaprodução que reúne as duas criaturas clássicas azedou o caldo. O filme, assinado por Adam Wingard, é constrangedor em absolutamente todos os níveis. Inerte como aventura de ação, é uma empreitada sem impacto, sem vibração, sem novidades, sem inteligência. É feio, enfadonho, barulhento e ofensivo.
Pois é. Ofensivo. Porque tudo bem uma aventura com Godzilla e King Kong não se levar a sério. É entretenimento, é pop e descartável. O problema é não levar seu público a sério, fazendo valer a lei do mínimo esforço. Tratar a plateia como incapaz é reflexo de toda uma linha de montagem dedicada unicamente a fabricar um produto, sem absolutamente nenhuma vocação criativa, preocupada unicamente em garantir o bônus para os executivos.
A situação fica ainda pior porque este "O Novo Império" chega aos cinemas sob a sombra de "Godzilla Minus One", produção japonesa que recuperou a grandeza de um de seus maiores símbolos pop, conquistando o mundo ao lembrar porque devemos temer o monstro. A impressão é que a Toho, dona do kaiju, só licenciou o personagem para mostrar que ninguém além deles sabe fazer direito.
Verdade seja dita, este "monstroverso" ocidental até então mantinha um certo respeito pelas criaturas. "Godzilla", que Gareth Edwards dirigiu em 2014, trazia um equilíbrio bacana entre austeridade e espetáculo, era cinemão pop com estilo e substância. "Kong: A Ilha da Caveira", feito por Jordan Vogt-Roberts em 2017, injetou o senso de aventura em terras exóticas que ampliou o escopo da marca.
Em "Godzilla e Kong: O Novo Império", desaparecem o estilo, a substância, a aventura e quaisquer resquícios de vida inteligente. Tudo bem que "Godzilla: O Rei dos Monstros" (2019) já tropeçava em sua própria ambição. O próprio "Godzilla vs. Kong", que o mesmo Adam Wingard fez em 2021, trazia um sabor de novidade com o primeiro round das criaturas que disfarçava o tédio de uma trama ruim. Mas o nível não precisava despencar de forma tão rasteira.
"O Novo Império" segue a aventura anterior, com Godzilla singrando os mares e defendendo a humanidade da ameaça de outros "titãs" — os kaijus do mal —, enquanto Kong busca uma existência pacífica na Terra Oca, mundo dentro do nosso, habitado por criaturas fantásticas. Enquanto o lagartão desmantela adversários (e cidades inteiras), para depois puxar um ronco dentro do Coliseu (é sério), o gorilão alimenta a melancolia de sua solidão — e sofre com uma dor de dente (é sério).
Essa trégua ameaça ser rompida a partir da trepidação psíquica experimentada por Jia (Kaylee Hottle), filha adotiva da cientista Ilene Andres (Rebecca Hall). Conectada a Kong, a jovem sente que uma nova ameaça pode destruir o planeta, o que justifica a movimentação atípica de Godzilla e uma nova incursão para a Terra Oca.
O que as duas descobrem — acompanhadas do blogueiro Bernie (Brian Tyree Henry) e do veterinário riponga Caçador (Dan Stevens) — é uma terra perdida escondida na terra perdida, com direito a uma civilização perdida (é sério) que serve de sistema de alerta global. A emergência se revela o plano de outro símio gigante, o Rei Cicatriz (é sério), para invadir o mundo da superfície e, sei lá, destruir tudo.
Wingard, obcecado por monstros bacanas e rock ruim, atola "O Novo Império" com imagens, criaturas e paisagens que raramente fazem sentido narrativo, mas que preenchem sua cartilha do cool. O Rei Cicatriz tem um kaiju capaz de mergulhar o mundo em uma nova era glacial? Sem problemas! Godzilla vira uma bateria gigante ao destruir uma penca de titãs? Vamos nessa! Kong ganha uma prótese mecânica no braço para ampliar sua força? Radical! Que tal inventar um mini Kong? Partiu Baby Yoda!
Enquanto isso, o trio de bons atores é jogado na lama, sequer tendo força para demonstrar qualquer constrangimento com o material que lhes é dado. Rebecca Hall interpreta com as sobrancelhas a trama paralela de sua filha que pode ter encontrado seu lugar no mundo. Dan Stevens parece um Bradley Cooper por atacado, escondido atrás de uma muralha de caretas. Em uma cena particularmente desoladora, o pobre Bryan Tyree Henry despeja sem pestanejar a pseudociência mais cretina possível.
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Quero receberA pancadaria entre monstros é parte da tradição do cinema pop. É o momento catártico em que produtos corporativos consagrados medem forças, fazendo a festa no bolão dos fãs. Nem isso injeta ânimo em "Godzilla e Kong", que abre mão do fator humano e fica com nada além da entediante destruição em escala global. Roma é varrida. As pirâmides do Egito viram pó. Um amigo me garantiu que viu o prédio do Banco do Brasil ser demolido durante o clímax nas praias do Rio de Janeiro.
Meu trabalho, por vezes insalubre, exige que eu me submeta a coisas como "Godzilla e Kong: O Novo Império". Fosse eu mero cinéfilo civil, encararia uma sessão unicamente como forma de expiar meus pecados, uma autoflagelação que, no curso ainda curto de 2024, já rendeu torturas como "Argyle" e "Madame Teia". Eu só queria ver monstros saindo no braço. Mas, olha, não dá para ser feliz.
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