O mundo perde Roger Corman, visionário do cinema indie e rei dos filmes B
O cinema seria muito diferente sem Roger Corman. Espera, deixa eu reformular: não haveria a indústria do cinema como conhecemos hoje sem a influência deste produtor, diretor, empresário, ator e revolucionário. Seria uma terra mais triste e menos ousada. Foram mais de sete décadas a serviço da arte cinematográfica. Corman morreu em casa, na Califórnia. Tinha 98 anos.
Ao longo de sua vida, ele produziu quase 500 filmes, dirigiu outras cinco dezenas, emprestou seu rosto como ator em produções como "O Poderoso Chefão - Parte II", "O Silêncio dos Inocentes" e "Apolo 13" e deu a primeira chance para alguns dos maiores ícones do cinema, de Jack Nicholson a Dennis Hopper, passando por Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Joe Dante e James Cameron.
Seu começo nesse mundo foi modesto, no departamento de correspondências da 20th Century Fox. Foi auxiliar de palco, assistente de agente literário e leitor de argumentos. Quando percebeu que a hierarquia dentro dos estúdios não funcionava na velocidade de sua ambição, decidiu fazer as coisas em seus termos.
Escreveu e vendeu seu primeiro roteiro, que seria filmado como "Consciência Culpada", em 1954, e usou o pagamento para financiar sua primeira produção, "Monster from the Ocean Floor", lançada no mesmo ano.
Encorajado a continuar produzindo filmes, Corman recusou ofertas dos estúdios Republic e Columbia e lançou "The Fast and the Furious" (sim, o nome da série com Vin Diesel foi licenciado) em 1955 com o independente American Releasing Company. O motivo era simples: seus financiadores toparam adiantar o orçamento de mais dois filmes em troca de seus serviços como realizador.
Entre 1955 e 1960, Roger Corman assinou mais de 30 filmes para o estúdio, rebatizado American International Pictures — nenhum deles com orçamento superior a US$ 100 mil.
Enquanto o cinema experimentava um período de consolidação nos Estados Unidos pós-Segunda Guerra, Corman investiu em diversão rápida e barata para lotar os drive-ins em todo o país. De suas mãos saíam westerns, fitas de terror e aventuras de ficção científica, além de produções voltadas às plateias adolescentes muito antes de essa fatia do público se tornar prioridade para os grandes estúdios.
Foi em 1958, quando dirigiu Charles Bronson na biografia do gângster Machine Gun Kelly em "Dominados Pelo Ódio", que ele passou a ser notado pela crítica, encantada em seguida por seu cinema mordaz e ousado com "A Loja dos Horrores", de 1960, que trazia no elenco um moleque de 23 anos chamado Jack Nicholson. Em vez de aproveitar o momento para fazer cinema com os grandes estúdios, Corman convenceu seu sócio Samuel L. Arkoff a abrir a carteira e bancar projetos mais parrudos.
O motivo era cansaço. Ele sabia entregar filmes em dez dias e com grana contada. Sua nova proposta era adaptar a obra de seu autor favorito, Edgar Allan Poe, com outra abordagem: em cores e rodada em 15 dias com orçamento de US$ 200 mil.
Arkoff topou, e "O Solar Maldito" se tornou sucesso de público e crítica. A obra de Poe rendeu mais sete filmes, entre eles "A Mansão do Terror", "O Corvo" e "A Orgia da Morte", reacendendo no processo a carreira de astros como Vincent Price, Peter Lorre e Boris Karloff.
Nesse período, cobrindo boa parte dos anos 1960, Corman deu espaço a jovens atores, roteiristas e diretores, iniciando a carreira de ícones como Robert De Niro, Ellen Burstyn, Robert Towne e Peter Bogdanovich. A essa altura, o produtor já havia cavado um nicho de respeito e sucesso. Mas sua natureza inquieta o fez voar solo, e em 1970 ele fundou a New World Pictures, justamente para financiar o mesmo tipo de filme que ele fazia com Arkoff na AIF.
Foi quando ele mudou mais uma vez o panorama do cinema. Em 1972, Corman voltou seu olhar para além das fronteiras e passou a trazer títulos estrangeiros para as salas de exibição ianques. O primeiro foi "Gritos e Sussurros", de Ingmar Bergman, seguido de pérolas como "A História de Adele H", "Amacord", "Sonata de Outono" e "Fitzcarraldo".
Para viabilizar a empreitada, Corman reinventou a fórmula para vender e distribuir filmes estrangeiros nos Estados Unidos. Sua estratégia incluia agendar sessões em cinemas fora do grande circuito, levando títulos de arte para novos públicos.
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Quero receberAo vender a New World em 1983 por US$ 16,5 milhões, Corman fundou a Concorde/New Horizons e continuou a produzir filmes com sua fórmula campeã. O jogo no cinemão americano, contudo, mudou na esteira dos filmes de grande orçamento como "Caçadores da Arca Perdida" e "De Volta Para o Futuro", produções com as quais ele não conseguia competir. O mercado internacional, contudo, segurou as pontas, e o imenso catálogo à sua disposição garantiu longevidade para relançamentos em VHS.
Afastado da cadeira de diretor desde 1971, quando comandou o drama de guerra "Águias em Duelo" (ele codirigiu a aventura espacial "Mercenários das Galáxias", em 1980, creditada somente ao animador Jimmy T. Murakami), Corman assinou seu último filme em 1990.
"Frankenstein, o Monstro das Trevas", produção de US$ 11,5 milhões — com US$ 1 milhão pingando em seu bolso —, trazia Raul Julia, John Hurt, Bridget Fonda e Jason Patric no elenco, mas teve uma recepção fria e encerrou sua carreira como cineasta.
Como produtor, contudo, Corman seguia de olho nas novas tendências do mercado. Fez filmes para lançamento direto em VHS/DVD, tocou projetos escoados em TV a cabo, fechou acordos de produção para streaming. Seu portfólio de mais de 400 títulos nunca deixou de render.
Em 2005 assinou um contrato de 12 anos com a Buena Vista para distribuir seus filmes no mercado de entretenimento doméstico. Em 2010, cravou um acordo com a Shout Factory pelos direitos exclusivos de 50 de seus filmes, um selo batizado "Roger Corman Classics" que incluia gemas como "Piranha", "Criaturas das Profundezas" e (meu favorito) "Galáxia do Terror".
Seus pares reconheceram sua excelência e importância em 2006, quando Corman recebeu a honraria máxima da Associação de Produtores da América. Três anos depois, foi agraciado com um Oscar honorário.
Ao falar sobre a lista de diretores que começaram sua carreira com ele, que também inclui Curtis Hanson, Paul Bartel, Ron Howard e Penelope Spheeris, o produtor dizia que "se vocês forem bons de verdade, nunca mais precisarão trabalhar comigo". Uma lenda sincera que deixa um legado irretocável.
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