Roberto Sadovski

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Reportagem

Como Halder Gomes transformou arte em cinema no incomum 'Vermelho Monet'

Halder Gomes conseguiu oxigenar a comédia brasileira quando mudou o eixo do Sul/Sudeste para fazer filmes em casa, na região Nordeste. "Cine Holliúdi", em parceria com o grande Edmilson Filho, disparou uma série de comédias que foram do cinema para a TV e de volta à tela grande. "O Shaolim do Sertão", "O Cangaceiro do Futuro", "Bem-vinda a Quixaramobim" - e eu já estou de olho em "C.I.C. - Centro de Inteligência Cearense".

Agora, quer ver o homem respirar fundo e engatar uma conversa apaixonada por horas? É só colocar na mesa os grandes pintores da história e sua obra. Um suspiro sobre Van Gogh, Vermeer ou Rembrandt e Halder desabrocha sua grande paixão. "Vermelho Monet", seu novo filme, é o ponto onde cinema e pintura se encontram, uma história que ele precisava colocar para fora.

Ambientado em Lisboa, no mundo frenético do mercado de artes e do negócio das falsificações, "Vermelho Monet" acompanha um pintor com um passado nebuloso (papel do gigante Chico Diaz), que tem a chance de enfrentar suas obsessões a negociante de arte interpretada por Maria Fernanda Cândido encomenda um quadro original. Acometido de um problema na visão que lhe remove a capacidade de enxergar cores, ele encontra em uma jovem atriz (a estreante Samanta Müller) a musa que pode lhe devolver a inspiração.

Parte drama existencial, parte thriller gótico, embalados em uma história de amor, "Vermelho Monet" é radicalmente diferente de todo o trabalho que Halder apresentou até então. É um filme meticulosamente planejado em seus movimentos visuais e musicais, forrado de símbolos e signos, que surpreendem pela riqueza de detalhes - uma edição em mídia física merecia uma faixa de comentários caprichada!

Conheci Halder quando ele lançou "O Shaolim do Sertão" e, mesmo tendo trocados ideias ao longo dos anos, fui arrebatado pelo volume de informação que ele transpareceu em nossa última conversa. Sobre arte. Sobre filmar em Portugal. Sobre transformar a visão de "Vermelho Monet" em realidade. E não é todo dia que podemos falar sobre a literal materialização de um sonho.

Halder Gomes, diretor de 'Vermelho Monet'
Halder Gomes, diretor de 'Vermelho Monet' Imagem: Pandora

"Vermelho Monet" é um desvio de curso radical das comédias que você sempre fez. São abordagens totalmente distintas ou existe alguma conexão que não é tão fácil de enxergar?

Existe um pouco das referências e dos estudos da pintura como uma pesquisa estética que eu trago para os filmes, às vezes mais do que do próprio cinema. Várias de minhas comédias trazem um estudo de psicologia das cores, referências de pinturas, pintores, e até mesmo integrada à mise em scene algumas situações onde a arte incorpora a cena. Em "O Cangaceiro do Futuro" todo o universo da casinha da personagem Mariah é inspirado em luz barroco holandesa de Vermeer e de Rembrandt. Já "Cine Holliúdi 2 - A Chibata Sideral" traz uma cena que é um grande estudo cromático de uma fase da pintura do cearense Chico da Silva. Já as personagens alienígenas tem seus movimentos e efeitos visuais em seus corpos que remetem à "Noite Estrelada" de Van Gogh.

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Fazer "Vermelho Monet" foi uma forma de colocar esse apuro estético à frente dos holofotes?

De certa forma, sim. A comédia tem um limite até onde você pode ir com esses estudos da pintura. A história não permite cruzar certas camadas e chegar num apuro. "Vermelho Monet" era um desejo de colocar na tela uma história com todo o acúmulo do que a pintura representa para mim.

Esse interesse, pelo visto, não é recente.

De forma alguma! É um conhecimento que adquiri ao longo de muito tempo, desde a infância lendo e estudando obsessivamente isso tudo. Viajei para lugares que foram cenários de vários pintores para entender a luz que eles pintaram, porque eles pintaram daquela forma. Nos últimos três anos, por exemplo, eu fiz toda a rota de Van Gogh na França pra entender o porquê de todos os quadros que ele pintou naqueles lugares. Vários cenários em Paris estão preservados, é onde ainda existem referências do que foi pintado. E fora os museus! Eu só viajo a turismo se o lugar tiver um museu!

Halder Gomes dirige Chico Diaz em 'Vermelho Monet'
Halder Gomes dirige Chico Diaz em 'Vermelho Monet' Imagem: Pandora

Essa paixão cabe em um só filme?

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Você resumiu bem, é um filme de paixão! Mas que pudesse, num recorte do primeiro de uma trilogia das telas que eu tenho vontade de fazer, estabelecer esse universo da relação mercado, artista e o mundo das falsificações com uma história de amor. Na superfície são personagens mundanos com seus desejos, os pecados capitais, a ambição, todas as trapaças e a soberba. Numa camada mais profunda entra a história da arte e suas referências e estudos de pinturas e pintores.

Em um panorama em que o cinema é colocado em caixas, como foi transformar "Vermelho Monet" em realidade?

Esse projeto começou em 2010. Eu escrevi as primeiras linhas quando estava filmando "Cine Holliúdi", e no processo de desenvolver todo o conceito minhas grandes parceiras visuais foram a fotógrafa Carina Sanginitto e a diretora de arte Juliana Ribeiro. Em paralelo, fui pontuando dentro das comédias todas as relações visuais e como elas foram elaboradas como um cartão de visita para que eu pudesse chancelar o convencimento de fazer "Vermelho Monet". Levei o roteiro para a produtora Mayra Lucas, que fez vários projetos comigo. Ela gostou da história e levantou metade dos custos. Como eu tinha acesso a um fundo automático de premiação pela performance do "O Shaolin do Sertão" no fundo setorial, usei esse recurso para complementar o orçamento.

Como foi que surgiu a ideia de filmar em Portugal?

Foi uma oportunidade de parceria com uma produtora de lá, a Ukbar Filmes, que é muito bem estabelecida e nos forneceram todos os serviços e todas as relações burocráticas que precisávamos para rodar o filme. Então eu tive uma equipe de Lisboa e levei algumas pessoas daqui, da minha equipe artística, para compor nesse que eu chamo de um grande intercâmbio cultural, profissional e artístico,

Maria Fernanda Cândido no set de 'Vermelho Monet' com o diretor Halder Gomes
Maria Fernanda Cândido no set de 'Vermelho Monet' com o diretor Halder Gomes Imagem: Pandora
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"Vermelho Monet" estabelece que Portugal também é parte do cenário, com o país e a cultura fazendo parte da trama. Era importante ambientar a ação lá ou essa história poderia acontecer em outros lugares?

Na verdade, essa história poderia acontecer em qualquer grande centro do mundo onde existisse um mercado muito ativo de arte, como Chicago ou Nova York. Obviamente que, quando você leva a história para a Europa, os países ali estão próximos e esses grandes mercados. Não só das casas de leilões, mas também de polos com grande concentração de artistas, de galerias e de museus. Portugal, especificamente, não é equivalente a uma Paris ou Londres nesse contexto, mas a Lisboa de hoje é uma cidade muito cosmopolita e um grande corredor de eventos culturais internacionais. E eu tinha o desejo de fazer um filme que fosse lusófono, até porque esse universo é geralmente retratado em francês ou em inglês. Seria interessante ver esse mundo de uma forma lusófona, no balé dessa melodia linda que é a língua portuguesa.

O que nos traz de volta ao Brasil, mesmo que seja um filme incomum em nossa cinematografia. Como foi estabelecer um diálogo de "Vermelho Monet" com o circuito exibidor para que o filme chegasse ao público?

É bem difícil, porque ele traz uma originalidade que às vezes a gente tem dificuldade até de encontrar referências fora da nossa filmografia. Não é fácil pela autorialidade que ele traz. Eu sempre penso nos movimentos da pintura e como eles foram provocantes em seu período, como eles passaram a ser compreendidos ao longo do tempo. Então eu sabia que tinha um filme que ia provocar um olhar talvez até de incompreensão no primeiro momento, de estranheza. Quando "Vermelho Monet" circulou em festivais, eu tive a oportunidade de ver como ele funcionava com vários perfis de público. Uma coisa que sempre chamou muita atenção é que, independente do conhecimento de arte que a pessoa tenha, o que está posto ali, da relação desses personagens, chegava na emoção do público, trazia essa provocação. A primeira camada funciona. As seguintes fazem parte de uma imersão que está lá e você alcança o que tiver ao seu conhecimento sobre a arte e música. Mas o sentimento vem, você talvez você não decifre, mas você sente.

Samantha Müller é a musa de 'Vermelho Monet'
Samantha Müller é a musa de 'Vermelho Monet' Imagem: Pandora

É um posicionamento complicado.

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Sim, porque até mesmo dentro do circuito de arte é um filme fora da curva. Essa é a parte complexa, mas eu estou tentando criar um mercado, assim como os filmes de luta não existiam e eu comecei a fazer, não era parte do nosso repertório. Espero aproximar o público dos filmes sobre pintores, sobre pinturas. Eu queria começar, plantar uma semente, quem sabe provocar alguém a fazer um filme sobre Tarsila, a fazer um filme sobre Portinari, ou até mesmo o desejo que eu tenho de fazer um filme sobre Chico da Silva.

Em certos momentos eu lembrei dos filmes de Peter Greenway, que também tinha uma relação estreita do cinema com a arte.

Você foi na referência mais certeira em relação a cinema. Talvez ele seja o cara que mais interage com a pintura dentro da sua estética do que propriamente influências de cinema. Wong Kar-Wai também relaciona muito as cores nos seus filmes, nenhuma cor está ali à toa, todas têm relação com a dramaturgia. São filmes com poucos personagens, que tem uma cadência própria, uma espiral própria da sua história se desenvolvendo rumo ao centro. Essa beleza é um ponto de sedução para esse tempo de contemplação.

Um respiro.

Isso. Então eu queria fazer um filme que tivesse esse tempo de contemplação. Muitas vezes as pessoas estranham o tempo dele porque a gente vive hoje numa velocidade do Instagram e do Tik Tok. O mundo, na verdade, só é assim quando a gente olha para a tela do celular. Mas o mundo, se você levantar a cabeça, ele não anda nessa pressa toda.

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