Roberto Sadovski

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Opinião

'Furiosa' transforma caos em cinema em mais uma obra-prima da saga Mad Max

Ninguém, absolutamente ninguém, opera no mesmo nível de George Miller. O cinema de ação, só para focar no aspecto mais evidente de sua obra, é conduzido em todo o mundo por grandes cineastas criando grandes filmes. Todos, porém, empalidecem ante o apuro técnico e a bagagem emocional que o diretor australiano de 79 anos injeta em seu trabalho, o que fica absurdamente evidente em "Furiosa".

Este novo capítulo da saga pós-apocalíptica, ambientada num futuro árido de recursos e esperança, consiste em fragmentos flamejantes de caos que, quando conectados, traduzem-se em uma jornada de vingança bem como de autoconhecimento. Miller costura com habilidade elementos do mundo real em uma tapeçaria fantástica, em que ultraviolência é a única linguagem que faz sentido quando a civilização encara seu próprio fim.

Esse vocabulário entrou em seu repertório com "Mad Max" thriller de ação enfurecido que, em 1979, profetizou um mundo cedendo sob o peso de seus próprios excessos. O semblante de civilização deu lugar dois anos depois ao deserto distópico de "Mad Max 2", que desenhou um futuro à beira do abismo, em que guerreiros solitários enfrentam gangues selvagens em busca da última moeda de troca: combustível.

A série passou três décadas dormente depois de "Mad Max Além da Cúpula do Trovão", ressuscitando com um estrondo em 2015 no já clássico "Mad Max: Estrada da Fúria". George Miller então reescreveu as próprias regras, lapidou seu futuro desolado e construiu uma máquina irrefreável forjada com fogo e sangue, em que seu Guerreiro da Estrada encontra uma fagulha de esperança ao cruzar o caminho de outra alma perdida, a beligerante Furiosa.

Anya Taylor-Joy em 'Furiosa: Uma Saga Mad Max'
Anya Taylor-Joy em 'Furiosa: Uma Saga Mad Max' Imagem: Warner

Quase uma década depois, "Furiosa: Uma Saga Mad Max" retrocede o relógio para narrar um prólogo de "Estrada da Fúria", concentrando-se na jornada da sobrevivente indomada da terra devastada. Embora compartilhe do DNA do filme encabeçado por Tom Hardy, são propostas criativas e narrativas distintas. Enquanto a aventura de 2015 acontece na vibração pulsante da estrada, "Furiosa" segue o ritmo destruidor e paulatino da vingança.

É um animal diferente, mas que apresenta as mesmas garras. Algumas décadas após a civilização retroceder à barbárie, Furiosa, ainda criança, vive em um "lugar de abundância". Não tarda e esse recorte do paraíso é visitado por homens do deserto, bárbaros que abdicaram da própria humanidade, que em seu ímpeto levam a jovem como prêmio - seguidos com determinação assassina por sua mãe. As duas jamais retornarão para casa.

Transformada em troféu de um déspota, o carismático Dementus, ela cresce impelida por um desejo insaciável de vingança, talvez a única forma de encontrar sentido em um mundo entregue à insanidade. Já adulta, agora sob a sombra de outro líder louco, Immortan Joe, Furiosa finalmente enxerga as engrenagens de seu plano se encaixarem em uma corrida final e irreversível.

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Chris Hemsworth engole areia em 'Furiosa'
Chris Hemsworth engole areia em 'Furiosa' Imagem: Warner

Enquanto em "Estrada da Fúria" Charlize Theron fez de Furiosa uma personagem endurecida mas impelida por um propósito nobre, ela agora ganha em Anya Taylor-Joy uma intérprete mais crua, sem nenhum refino, alinhada com o momento de sua jornada. A atriz, relevada em "A Bruxa", traz em seu olhar o vazio assustador de quem foi engolido pela terra devastada. Descobrir seu propósito é o caminho de sua reconstrução.

"Furiosa" desenha sua trajetória em paralelo com os esforços quase patéticos dos homens no trono em construir um semblante de civilização. Enquanto Immortan Joe (Lachy Hulme) consolida seu poder na Cidadela, é Dementus, conduzindo uma biga puxada por motocicletas, quem melhor compreende a futilidade de se agarrar a conceitos inócuos como "esperança" em meio ao deserto infinito de um mundo quebrado.

Não é exagero afirmar que Chris Hemsworth nasceu para interpretar Dementus. Sua personalidade explosiva é perfeita para dar corpo a um líder messiânico e extravagante, capaz de romper o equilíbrio precário da sociedade reerguida no deserto ao emparelhar seu narcisismo com sua incompetência. Dementus é um coach distópico que arrebanha seguidores com carisma inegável para colocar suas vidas em risco por total incompetência. Um picareta do fim do mundo.

George Miller administra o caos no set de 'Furiosa'
George Miller administra o caos no set de 'Furiosa' Imagem: Warner

Embora não alcance a urgência cinética de "Estrada da Fúria" - até por não ser sua proposta -, "Furiosa" reafirma repetidas vezes a supremacia de George Miller como maestro cinematográfico do caos. E não apenas na urgência de sua coreografia violenta e operística, que eleva o jogo do cinema de ação a patamares que, honestamente, não serão alcançados: Miller encontra matéria-prima narrativa nos espaços, na vastidão do deserto, no silêncio que conecta seus personagens.

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Existe um oceano a ser lido nas entrelinhas da ação vertiginosa de "Furiosa". Sua busca por vingança levanta a questão do quanto essa jornada seria infrutífera, e como suas ações apenas refletem, de forma incômoda, os movimentos do vilão que compreendeu que um mundo quebrado não tem retorno. Nas mãos de Miller, a densidade emocional rivaliza com o escopo do espetáculo, em uma aventura que ressignifica e enriquece o próprio "Estrada da Fúria".

Em um cenário cinematográfico em que filmes se posicionam como mero produto para consumo imediato, "Furiosa" é o raro blockbuster que tem algo a dizer e muito a mostrar. É uma empreitada que solidifica a escala épica e a desolação profunda do futuro erguido por George Miller, em que o visual inebriante emoldura uma jornada de impulsos primitivos. Talvez seja esse o segredo de "Furiosa": mesmo no fim do mundo, precisamos reafirmar nossa humanidade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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