Roberto Sadovski

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Lapidado na guerra e no terror, Donald Sutherland deixa legado inesquecível

A primeira imagem que vem à mente ao pensar em Donald Sutherland é também a mais assustadora. É o clímax de "Os Invasores de Corpos", de 1978, quando seu personagem, após descobrir uma conspiração alienígena se apossando da Terra, sucumbe aos invasores, sua nova identidade evidenciada pelo som gutural emitido por seu novo eu. Foram semanas sem pregar o olho.

A presença imponente do ator canadense, que sucumbiu aos 88 anos após uma longa batalha com uma enfermidade não revelada pela família, era sinal que a encrenca não estava longe. Não que ele estivesse preso a personagens sinistros ou amorais, e sim porque Sutherland os interpretava em um crescendo ameaçador nunca menos que desconcertante.

Criado na província da Nova Escócia, Donald flertou com um futuro como engenheiro antes de optar pela arte dramática. Cruzando o oceano, avançou os estudos em Londres antes de iniciar sua carreira no começo dos anos 1960 em filmes e séries britânicos, um currículo que ia de filmes de terror a produções que abordavam a atmosfera sufocante da Guerra Fria ?experiências determinantes para o futuro do ator.

Donald Sutherland se tornou astro em 'M.A.S.H.'
Donald Sutherland se tornou astro em 'M.A.S.H.' Imagem: Fox/20th Century Studios

Um episódio da série "O Santo" dirigido por seu protagonista, Roger Moore, o colocou no elenco de um filme de guerra de produção americana a ser rodado na Inglaterra. Era "Os Doze Condenados", de Robert Aldrich, em que Sutherland seria um dos soldados do título, em uma missão suicida ao lado de Lee Marvin, Charles Bronson e John Cassavetes. Com o sucesso da aventura, ele deu adeus ao Reino Unido e foi para Los Angeles.

Hollywood, claro, fez o que Hollywood faz melhor, e tratou de colocar Sutherland em mais filmes de guerra. Em um deles, "Os Guerreiros Pilantras", ele interpretou um piloto de tanque hippie ao lado de Clint Eastwood. Já "M.A.S.H.", libelo antiguerra de Robert Altman, fez do ator um astro e determinou sua posição como ativista nos tempos conturbados do conflito do Vietnã.

Embora ambientado na guerra da Coreia, "M.A.S.H." era claramente uma alusão ao absurdo da interferência americana na política do país asiático, o que resultou em uma derrota estrondosa e a demolição da imagem imbatível cultivada pelos Estados Unidos. Sutherland abraçou a sátira proposta por Altman e, embora houvesse choque com o estilo do diretor, que cultivava o improviso, terminou como um dos atores mais emblemáticos da contracultura.

O ator abraça o horror psicológico de 'Inverno de Sangue em Veneza'
O ator abraça o horror psicológico de 'Inverno de Sangue em Veneza' Imagem: Divulgação

Ao longo dos anos 1970, Donald Sutherland usou sua estatura como protagonista em filmes diversos e notáveis, em especial "Klute - Seu Passado Condena", com a parceira e ativista Jane Fonda, e o espetacular "Inverno de Sangue em Veneza", de Nicolas Roeg, um suspense impecável que fez história.

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Compondo com Julie Christie um casal abalado com a perda da filha pequena, o ator encenou algumas das sequências mais surpreendentes da história do cinema —uma cena íntima com Christie, que por anos deixou o público coçando a cabeça se eles haviam extrapolado o limite da interpretação, outra que praticamente reescreveu o livro dos finais-surpresa, uma reviravolta que congelou o sangue da plateia da época.

Depois de ser apresentado a uma nova geração com a comédia "Clube dos Cafajestes", de 1978, Sutherland entrou na década seguinte recalibrando sua imagem para a indústria. Foi assim que ele interpretou o pai devastado pelo suicídio do filme que busca manter a família unida no premiado drama "Gente Como a Gente", que Robert Redford fez em 1980. A crítica ao american way, lapidada por anos de ativismo, surgiu mais discreta, mas não menos incisiva.

O clímax desolador e apavorante de 'Os Invasores de Corpos'
O clímax desolador e apavorante de 'Os Invasores de Corpos' Imagem: Divulgação/United Artists

Eu gosto muito do thriller "O Buraco da Agulha", que Richard Marquan rodou em 1981 e terminou como o último protagonista romântico do ator, aqui como um espião alemão que, durante a Segunda Guerra, se envolve com uma mulher casada em uma ilha na costa da Irlanda.

Para o resto da década, contudo, Sutherland foi de ator de escolhas ousadas (e nem sempre acertadas) para operário em filmes eficientes, porém pouco memoráveis. Ele não dispensou nem o papel de vilão em drama de ação com Sylvester Stallone ("Condenação Brutal").

Donald Sutherland, então, passou a ancorar filmes menos expressivos, destacando-se como coadjuvante de luxo em produções requintadas. Fez "JFK", com Oliver Stone, e "Cortina de Fogo", com Ron Howard. Apoiou Will Smith em sua transição da TV para o cinema com o drama "Seis Graus de Separação" e emprestou seu imenso talento a candidatos a blockbuster como "Assédio Sexual", "Epidemia", "Possuídos" e "Tempo de Matar". Inevitavelmente era presságio de encrenca para os protagonistas.

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Sutherland em seu último grande papel como o presidente Snow em 'Jogos Vorazes'
Sutherland em seu último grande papel como o presidente Snow em 'Jogos Vorazes' Imagem: Paris

Não era raro Donald Sutherland se destacar entre seus pares. Foi assim em 1998, quando interpretou o técnico Bill Bowermann no drama esportivo "Prova de Fogo". Foi assim em 2005, quando assumiu o papel de pai de Keira Knightley na adaptação de "Orgulho e Preconceito". Embora aclamado por seus pares, o ator jamais chegou a ser indicado ao Oscar, mesmo com performances aclamadas em clássicos modernos.

Não que isso tenha abalado suas convicções e seu profissionalismo. No crepúsculo de sua carreira, Donald Sutherland conseguiu deixar sua marca para uma nova geração como o manipulador e cruel presidente Coriolanus Snow na série "Jogos Vorazes", dando dimensão a um personagem que, em mãos menos habilidosas, poderia facilmente escorregar para a caricatura.

Com Donald Sutherland, não se empenhar sem barreiras a um papel não era opção. Não importava o tamanho do personagem ou as dimensões de seu nome do cartaz do filme, ele trazia uma bagagem de técnica e de compromisso. Deixando, assim, um legado de performances inesquecíveis em filmes gravados na história do cinema. No caso de "Os Invasores de Corpos", também em meus pesadelos.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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