'The Acolyte' expande o universo 'Star Wars', mesmo com o choro do fã velho
Trabalhar com um universo estabelecido não é fácil. Admiro, portanto, qualquer um que se aventure a bolar uma nova história nas fronteiras de "Star Wars". Se em teoria a criação de George Lucas é o tabuleiro perfeito para ser expandido, na prática todo ímpeto criativo encontra uma barreira em fãs "tradicionais" que acreditam ser donos da marca e preferem tudo do jeito que está.
"The Acolyte" deu de ombros para essa "regra" e fez o que nenhum outro filme ou série deste universo se atreveu: saiu do quintal da história bolada por Lucas para explorar uma linha temporal totalmente nova, apresentando personagens e eventos que adicionam camadas ao cânone já estabelecido ao longo de quase cinco décadas.
O resultado, embora irregular, trouxe mais altos do que baixos. Criada pela dramaturga, roteirista e diretora Leslye Headland, "The Acolyte" acontece pelo menos um século antes dos eventos mostrados em "Star Wars: A Ameaça Fantasma", até então o marco zero para a saga. Embora a premissa comece como uma investigação policial, ela logo se expande em uma trama sobre as consequências do poder absoluto.
Todos os símbolos familiares no universo "Star Wars" estão no lugar: a onipresença dos Jedi como força do bem, a democracia conduzida pela República, a devoção à Força, a influência dos malignos Sith, os combates de sabres de luz. Um dos grandes acertos em "The Acolyte" é usar o conhecimento do público acerca de cada elemento e subverter suas expectativas.
A história é disparada pela morte de mestres Jedi por uma assassina misteriosa. Um cavaleiro da ordem, Sol (Lee Jung-jae), inicia uma investigação, trazendo para o caso sua ex-Padawan, Osha (Amandla Stenberg). A culpada é revelada como Mae, irmã gêmea de Osha, e seus motivos remetem à sua infância e à interferência de um grupo de Jedi - os mesmos marcados para morrer - que anos antes causou uma tragédia.
"The Acolyte" não trata os Jedi como guerreiros infalíveis. Pelo contrário: a série explora que muitos não possuem nenhum controle sobre suas emoções, e que podem facilmente recorrer a mentiras e traições em nome de um suposto "propósito elevado". Essa observação sobre a arrogância em torno do poder absoluto é consolidada, décadas depois, com a queda de Anakin Skywalker para o Lado Sombrio e o surgimento do Império.
Essa trama não se sustenta a contento ao longo de oito episódios. Alguns personagens pecam pelo pouco desenvolvimento, outros experimentam uma mudança brusca em sua personalidade, apostando em uma segunda temporada para lapidar melhor suas histórias. Ainda assim, "The Acolyte" consegue solidificar a ameaça dos Sith dentro do cânone de "Star Wars", sugerindo a presença de uma entidade maligna que, até então, fora apenas sugerida no terceiro episódio da saga, "A Vingança dos Sith".
Essa guinada para o misticismo, representado por uma agregação de bruxas capazes de lidar com a Força de maneiras que os Jedi sequer sonham, dialoga com parte do universo "Star Wars". Mas o desvio radical da ópera espacial de batalhas estelares entre heróis e vilões bem estabelecidos, fez um naco do fandom - os devotos mais velhos e mais tradicionais - torcer o nariz.
Para esse recorte de fãs, "Star Wars" existe apenas na trilogia clássica, encerrada em 1983 com "O Retorno de Jedi". É uma turma que apenas tolera os prequels dirigidos por Lucas entre 1999 e 2005, e demoniza tudo que foi produzido após a compra da LucasFilm pela Disney. A grande vilã seria a produtora Kathleen Kennedy, mesmo que esses devotos aplaudam projetos igualmente capitaneados por ela, como "The Mandalorian" e "Andor". O fã é uma figura peculiar.
Com seu esforço para reproduzir em cena um ambiente mais representativo e diverso, com protagonistas que fogem do estereótipo do herói Luke Skywalker, "The Acolyte" se tornou alvo dessa turma, que jogaram sua nota no chão em sites colaborativos e mantiveram o mesmo discurso ácido mesmo quando a série abordou exatamente os pontos antes apontados como "falhos". Eles aprenderam uma palavrinha nova, "woke", e a usam como rótulo em tudo que ofenda sua sensibilidade.
Faltou em "The Acolyte", claro, uma direção mais precisa e uma trama central melhor amarrada. Mas são pecados compensados pela inventividade, pela expansão bem-sucedida da narrativa de "Star Wars" e por cenas de ação bem coreografadas, em especial o conflito derradeiro entre Sol e o misterioso mestre Sith que orquestra a trama das sombras.
Apesar do chororô desse suposto fã, intolerante com seu próprio objeto de devoção, o universo "Star Wars" vai continuar se expandindo, tanto em streaming como no cinema. As ideias de George Lucas sobre religião, política e sociedade, traduzidas em uma aventura espacial vibrante, não vão deixar de ser expandidas para um público cada vez mais amplo e alinhado com o novo século. Um universo no qual o ódio e intolerância só deveriam existir como combustível para a ficção.
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