'The Boys' deixa claro quem é a piada em uma quarta temporada brilhante
Ninguém está salvo em "The Boys". Se essa premissa já estava clara desde a estreia da série, o final desta quarta temporada turbina suas consequências. O que está em jogo vai além da integridade física dos habitantes desse mundo: em circunstâncias extremas, não sobra espaço para nenhum senso moral, nenhum traço de lógica ou compaixão. A vítima é o espírito de todos.
Difícil imaginar outro desfecho quando o antagonista é um sociopata tão superpoderoso quanto ignorante, disposto, por puro ego, a envolver o planeta em um estado policial que caminha inevitavelmente para um regime fascista. Quando os "heróis" são obrigados a abandonar a mera sugestão de altruísmo como única alternativa nessa guerra, eles passam a ser vilões sob o olhar do público. É uma situação de derrota absoluta.
Nessa quarta temporada, o criador da série., Eric Kripke, abraçou os extremos. Se ainda restava alguma dúvida que "The Boys" era uma alegoria política do mundo moderno, essa leva mais recente de episódios deixou qualquer sutileza de lado: o cenário é uma arena política e o inimigo é a extrema direita, um caldeirão que mistura religião, patriotismo e uma visão torta de valores familiares determinado a enganar a massa manipulável.
Não foi por acaso que "The Boys", idolatrado por uma fatia de público que se divertia com as loucas aventuras de seres superpoderosos radicais, numa mistura explosiva de humor questionável, sexo desenfreado e ultraviolência, passou a ser rejeitado por esse mesmo recorte. Eles perceberam, com um certo atraso e bastante constrangimento, que sempre foram o alvo da piada.
"The Boys" entrou na reta final, preparando-se para a quinta e derradeira temporada, colocando a casa em ordem. Após o confronto com Soldier Boy (Jensen Ackles), e com um Capitão Pátria (Anthony Starr) cada vez mais instável, a equipe traça um plano para eliminar de vez os supers do planeta. Mas eles estão em frangalhos, com Billy Bruto (Karl Urban) definhando devido a um tumor e o resto do time afundado em resolver problemas pessoais.
Essa primeira metade da temporada trouxe pouca coesão, dispersando os conflitos em pequenos bolsões narrativos. Embora fosse uma necessidade para a fluidez da trama e a resolução de arcos dramáticos individuais, faltou à retomada o pulso que fez de "The Boys" um programa tão irreverente e imprevisível. Felizmente, foi um soluço temporário. Logo a série engatou uma segunda, não desacelerou e encerrou num gancho brilhante.
Impossível não assistir a "The Boys" e enxergar nuances do momento político atual em sua trama. A divisão experimentada hoje nos Estados Unidos, em que o campo progressivo bate de frente com a ignorância dos que se escondem atrás da trinca "Deus, pátria e família", foi materializada em uma mistura explosiva de estupidez e poder de convencimento, representada por extremistas como a pistoleira Espoleta (Valorie Curry).
Cada aspecto social e político do mundo real é turbinado sob a lente de "The Boys", expediente utilizado desde o lançamento da série, que agora ganha contornos premonitórios e assustadores. Kripke encaixa com frequência ideias usadas por políticos da direita americana, e é surpreendente como as falas de figuras, como a congressista republicana Marjorie Taylor Greene, com seu discurso azeitado por mentiras, vitimismo, preconceito e ódio, casam perfeitamente com as ideias dos extremistas da ficção.
Existe um distanciamento saudável da série com os quadrinhos que lhe deu origem. Criada por Garth Ennis e Darick Robertson, a HQ mirava sua verve satírica para o absurdo do mundo dos super-heróis, conceito que Ennis jamais levou a sério. Para ele, nada mais patético que gente superpoderosa usando fantasias coloridas —e não existe correspondente no mundo real mais patético do que a extrema direita e seu culto à ignorância.
A ideia de criar uma série em quadrinhos que desconstrói os estereótipos dos super-heróis, ao mesmo tempo em que extrapola sua existência em um cenário hiper-realista, não é nova. Do clássico "Watchmen" a séries como "Marshall Law", "Powers" e "Rising Stars", a corrupção pelo poder absoluto é tema recorrente. A diferença é que "The Boys", especialmente na TV, se atreveu a explorar esse conceito sem impor consequências às ações mais grotescas de seus personagens.
Como resultado, "The Boys" se tornou um dos melhores e mais incômodos reflexos sociais no campo da fantasia no século 21. A conclusão da quarta temporada sugere uma guerra civil de supers, com o Capitão Pátria, sujeito mentalmente instável, mas extremamente poderoso, mirando o domínio absoluto. Sua verve violenta e populista, que mistura egocentrismo e religião, patriotismo e descontrole, fazem dele um vilão extremamente perigoso —e, sem nenhuma surpresa, admirado por quem se enxerga nesse espelho.
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