'Deadpool & Wolverine' é reunião de amigos que patina sem sair do lugar
"A Fox o matou e a Disney o trouxe de volta." Não é novidade que Deadpool, o mercenário tagarela, tenha o hábito de relembrar constantemente que ele vive em um filme. "Eles vão fazê-lo trabalhar até os 90 anos", completa, trazendo o mutante Wolverine para dentro da piada. A resposta é um grunhido, como se ninguém tivesse dito a Hugh Jackman que ele está em uma comédia.
Arrancar risadas da plateia é uma das duas prioridades de "Deadpool & Wolverine", aventura que recupera o astro australiano para o mundo dos super-heróis Marvel e o coloca ao lado do polivalente Ryan Reynolds. A segunda, esticada ao longo de duas horas, é costurar o máximo possível de referências, piadas internas, participações especiais e algumas surpresas, mirando exclusivamente ao fã mais hardcore.
Espremendo-se entre uma e outra, está um fiapo de filme tentando, a duras penas, traçar uma história que justifique não só o encontro, mas a responsabilidade em dar um respiro ao universo cinematográfico Marvel. Solapado por uma sequência de filmes e séries que nem sempre alcançaram a excelência de aventuras épicas como "Vingadores: Ultimato", a marca está longe de precisar ser "salva", mas pode usar um refresco.
"Deadpool & Wolverine" é quase este filme. Dirigido por Shawn Levy, que fez "Free Guy" e "O Projeto Adam" com Reynolds, e "Gigantes de Aço" com Jackman, é uma experiência inegavelmente divertida, de longe a melhor comédia que a Marvel já fez. A mudança de estúdio não alterou sua verve autorreferente e sua violência adolescente, eficientes mesmo que o roteiro raso e sem riscos ande em círculos e não chegue em lugar nenhum.
O que é um pecado, já que "Deadpool & Wolverine" nasce de uma ideia esperta e inventiva. Depois de consertar os infortúnios de sua última aventura usando a máquina do tempo de Cable (Josh Brolin, ausente do novo filme), Wade Wilson (Reynolds), após uma tentativa frustrada de entrar para os Vingadores (trazendo o primeiro de muitos convidados do elenco), pendura a fantasia e se contenta em ser vendedor de carros usados.
Embora tenha rabiscado uma família com o núcleo que o acompanhou nos dois primeiros filmes, inclusive a ex-namorada Vanessa (Morena Baccarin, que deve ter uns 5 minutos em cena), Wade segue descontente. De alguma forma, ele sente que não tem nenhuma relevância no grande esquema das coisas. Sente que sua vida resume-se a um grande nada.
É quando batem em sua porta agentes da Autoridade de Variância Temporal (ou AVT, popularizada na série "Loki"), que o levam até um burocrata, o Sr. Paradoxx (Matthew Macfadyen, devorando o cenário). Nesse nexo de realidades, Deadpool é convidado a compor a "linha do tempo sagrada" - ou seja, o universo Marvel como conhecemos desde que "Homem de Ferro" lhe deu o pontapé inicial em 2008. É a chance de ele finalmente fazer a diferença.
A pegadinha é que, para que Wade abrace seu papel no novo mundo, o que inclui a responsabilidade de salvá-lo no futuro, é necessário deixar o antigo, junto com todos os seus amigos, para trás. Para piorar, sua linha do tempo está se desintegrando até ser totalmente apagada. O motivo é morte de sua "âncora", um herói que se sacrificou de forma nobre e altruísta: o Wolverine, como mostrado ao final de "Logan" em 2017.
Sua decisão ganha urgência quando Paradoxx lhe diz que, em vez de esperar os dois milênios padrão para uma realidade evaporar, ele construiu uma engenhoca que vai acelerar o processo em 72 horas. Deadpool traça, então, um plano desesperado: buscar um Wolverine em uma linha temporal alternativa para restaurar a âncora do seu universo - assumindo, claro, que o mutante escolhido tenha alguma disposição para salvar um mundo que não é seu.
É aqui que "Deadpool & Wolverine" deixa de ser um filme para se tornar um mecanismo. A "busca pelo Wolverine" faz Wade esbarrar em meia dúzia de variantes que vão fazer o fã de gibis dar gritinhos. Depois, sua jornada se inicia quando ele e a versão furiosa e autodestrutiva de Logan são banidos pela AVT para o Vácuo (outra herança de "Loki"), um lixão interdimensional para onde variantes de centenas de personagens são banidas para morrer.
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Quero receberO Vácuo é uma escolha estranha como campo de batalha, já que é um cenário pouco inspirado e extremamente confuso. O lugar, por outro lado, traz a desculpa perfeita para recuperar heróis esquecidos, em sua maioria herança da era Marvel na Fox. Alguns nomes já circulavam por entre a turma plantada 24/7 na Internet, outros são surpresa genuína, mas se você leu um boato sobre alguém escalado para o filme, pode marcar o bingo porque certamente ganhou um ponto.
É nesse deserto que "Deadpool & Wolverine" apresenta sua vilã. Cassandra Nova (Emma Corrin), irmã gêmea do professor Charles Xavier, foi banida para o esquecimento por representar com seus poderes psíquicos uma ameaça ao tecido da realidade - ou algo que o valha. Corrin faz a vilã-padrão, de dicção perfeita, que literalmente improvisa um plano e, lá pela metade do filme, toma uma decisão totalmente oposta à sua caracterização. Tudo bem, ninguém está dando muita bola.
Sem uma trama coesa para se ancorar, "Deadpool & Wolverine" busca alguma tração ao abraçar o multiverso como bala de prata para recuperar rostos do passado. O problema é que esse conceito surgiu não de um ímpeto criativo, e sim de uma necessidade operacional das editoras de quadrinhos para acomodar os personagens comprados de concorrentes menores e as versões surgidas com personagens no ar há décadas.
No cinema, e na Marvel em particular, o multiverso rendeu uma carga dramática poderosa em "Homem-Aranha - Sem Volta Para Casa", e ganhou ares de curiosidade em "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura" por trazer o frescor de colocar novatos e veteranos no universo do estúdio, como John Krasinski e Patrick Stewart, em pontas celebradas. Aqui, contudo, falta investimento emocional.
Resta, portanto, um festival de personagens, muitas vezes aleatórios, que tenta disfarçar o fato de que a história não é das mais interessantes. Ao se encaixar no modelo do road movie, "Deadpool & Wolverine" busca um gancho emocional que simplesmente não está lá. Wade, que não abre mão da verve cômica, não cola como mártir que sofre por seus amigos. Já Logan sofre como herói responsável por uma tragédia em seu mundo, mas nunca vemos de fato o que aconteceu. É a antítese do cinema: narrar fatos em vez de mostrá-los.
Mesmo com o filme trabalhando contra eles, Ryan Reynolds e Hugh Jackman estão afiados e justificam a parceria. Apesar do caos narrativo, o retorno do Wolverine realmente funciona, com o ator claramente revigorado para retomar o personagem - físico trincado incluso. Enquanto Reynolds faz com eficiência seu feijão com arroz, é para Jackman, ainda interpretando o X-Man como se estivesse num western de Sergio Leone, que nossa atenção sempre converge.
Ver a dupla trocando impropérios como Jack Lemmon e Walther Matthau quase compensa alguns pecadilhos perpetrados por "Deadpool & Wolverine". A máscara emblemática do mutante, por exemplo, elegante e misteriosa nas HQs, é um trambolho que não funciona em um mundo tridimensional. A "entrevista" para os Vingadores que abre o filme simplesmente não faz sentido na linha narrativa. E o clímax é, na falta de uma palavra melhor, anticlimático.
Para o filme que supostamente daria novo fôlego para a Marvel, é pouco. Muito pouco. As aventuras anteriores do Deadpool funcionam - em especial a primeira - porque sua irreverência frenética e a constante quebra da quarta parede costuravam uma estrutura de ação clara e coerente. Ao contrário do novo filme, havia objetivos mais precisos, personagens melhor desenhados e uma trama que fazia sentido. O novo filme deve faturar horrores, mas não vai deixar um legado. O cinema, como a vida, é feito de escolhas.
Curiosamente, a Marvel não fez de "Deadpool & Wolverine" uma vitrine para o futuro do estúdio e nem o usa como trincheira para trazer os X-Men a seu universo compartilhado. Essa reunião de Ryan Reynolds e Hugh Jackman, 15 anos depois de "X-Men Origens: Wolverine", é uma homenagem aos filmes com o selo Marvel da primeira década dos anos 2000 que pavimentaram o caminho para a predominância dos super-heróis hoje.
Não é por acaso que a montagem de bastidores de aventuras mutantes pregressas, apresentada nos créditos finais, seja genuinamente emocionante. Se a leitura imediata é de uma despedida de toda uma era para abrir espaço para o novo, eu sugiro um olhar diferente. "Deadpool & Wolverine", afinal, deixa escancarado o que o leitor de quadrinhos sabe desde sempre: no mundo fantástico dos super-heróis, ninguém fica morto por muito tempo.
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