Cate Blanchett em 'Borderlands' prova que até astros têm contas pra pagar
Uma anedota recorrente em Hollywood envolve Michael Caine e a bomba "Tubarão - A Vingança", de 1987. O ator disse, anos depois de seu lançamento, que nunca assistira ao filme, terceira continuação do clássico de Steven Spielberg. O que ele viu, com imensa satisfação, foi a casa que comprou para sua mãe com o cachê de US$ 1 milhão por duas semanas de filmagem. "É uma maravilha", ressaltou.
Eu espero de coração que Cate Blanchett tenha investido os dobrões que ela embolsou por "Borderlands" em um imóvel esplendoroso às margens de algum lago na Itália. Seria a única forma de extrair qualquer prazer do seu envolvimento com essa fantasia espacial desastrosa, uma hecatombe em forma de filme que briga com "Madame Teia" e "Rebel Moon" como pior emprego de tempo, dinheiro, talento e recursos do ano.
De minha parte, dispor de tempo para tecer essas linhas é praticamente um dever cívico. Desde que respirei fundo e encarei uma sessão de "Cats" para que você não perdesse seu tempo - isso em tempos imemoriais pré-pandemia -, eu não sentia tanto orgulho como membro atuante da sociedade. A crítica cinematográfica, veja só, também é um serviço de utilidade pública - mesmo que eu ainda espere algum adicional por insalubridade.
"Borderlands" é mais uma adaptação de videogame com entendimento totalmente equivocado da palavra "adaptação". Se o prazer em um jogo está em se tornar o protagonista, mecânica que justifica uma premissa muitas vezes tênue, um filme precisa de roteiro sólido, com bons personagens, arcos dramáticos, dilemas e conflitos, para justificar nosso investimento como observadores.
O diretor Eli Roth, por sua vez, achou que reproduzir uns gráficos bacanas e acertar nomes de planetas e criaturas era o bastante. Chá revelação: não é. Nem mesmo um talento superlativo como o de Cate Blanchett, ancorada por um rol de coadjuvantes colorido, é capaz de injetar algum ânimo em uma aventura histérica, sem ritmo, profundamente cafona e absolutamente datada. Ela é atriz mas não faz milagres.
O que ela faz em "Borderlands" é defender com absoluto profissionalismo o papel de Lilith, caçadora de recompensas casca grossa que é coagida a topar uma operação de resgate. Contratada por um magnata cósmico, Atlas (Edgar Ramírez), ela retorna a seu planeta natal, Pandora (não o de "Avatar"), para encontrar a filha do sujeito, Tina (Ariana Greenblat).
O serviço se complica porque Pandora é um ferro-velho desértico, ocupado por mercenários e aventureiros em busca de uma "arca" espacial deixada lá por uma raça superiora de alienígenas. Tina parece essencial para encontrar o tal tesouro e está na mira de todos no planeta, sendo protegida por um soldado rebelde (papel de Kevin Hart) e um psicopata grandalhão (interpretado pelo grandalhão Florian Munteanu).
Claro que Lilith esconde segredos de seu passado que a conectam a Pandora, e claro que esse bando de desajustados - completado pela cientista vivida por Jamie Lee Curtis e por um R2-D2 de baixa renda com voz de Jack Black - precisa deixar as diferenças de lado para a) proteger Tina, b) encontrar a arca e c) dar uma rasteira nas intenções messiânicas de Atlas.
Existe em "Borderlands" um traço de clones de baixíssimo orçamento de "Mad Max", como "Space Hunter", "Cherry 2000", "Barb Wire" e "Tank Girl". Falta a Eli Roth, contudo, habilidade para lhe injetar charme e senso de humor. Não há finesse em sua execução, não há inspiração ou inventividade em sua direção - o que, em uma fantasia espacial apocalíptica, é o maior dos pecados. Uwe Boll, o papa desse subgênero, é Stanley Kubrick perto de Roth.
Cate Blanchett, supernerd que é, faz aqui o impossível: ela adiciona camadas e busca um gancho emocional em um papel descaradamente unidimensional, preso às piores convenções do gênero. É surreal que "Borderlands" seja seu filme seguinte ao excepcional "Tár" (que, diga-se, foi filmado depois), e é um prazer (um dos únicos aqui) assistir ao trabalho irretocável de uma atriz sem absolutamente nenhum pudor para abraçar o absurdo.
O resto do elenco tenta, nem sempre com sucesso, acompanhar seu ritmo. Jamie Lee Curtis faz o que pode com uma personagem que basicamente está ali para explicar a história. Não sei quem teve a ideia "brilhante" de escalar Kevin Hart como um soldado letal como John Wick, mas o resultado é exatamente como ele soa. Ariana Greenblat recebeu uma única direção - "seja uma adolescente insuportável" - e a grande Gina Gershon está irreconhecível, o que talvez seja para melhor.
Newsletter
O QUE FAZER EM SP
Qual a boa do fim de semana? Receba dicas de atrações, passeios, shows, filmes e eventos para você se planejar. Toda sexta.
Quero receberRodado no auge da pandemia em 2021, "Borderlands" teve uma pós-produção atribulada, marcada por refilmagens tardias e por um script reescrito por meia dúzia de profissionais - o primeiro roteirista envolvido no projeto, Craig Mazin ("Chernobyl", "The Last of Us"), pediu para ter seu nome removido dos créditos. O texto final é assinado por Eli Roth e por um certo Joe Crombie, provavelmente o pseudônimo de alguém que preferiu não se queimar.
Todo esse drama, claro, é irrelevante para você, caro leitor, que está comprando o ingresso e a pipoca, pronto para se acomodar na poltrona por duas horinhas. Fica, contudo, o alerta: o sarrafo para adaptações de videogames é historicamente bem baixo, e "Borderlands" só piora, e muito, esse cenário. A melhor saída é fingir ser um vampiro e encarar "Borderlands" como se fosse um cordão de alho. Para bom entendedor...
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.