Modesto, 'Hellboy e o Homem Torto' sofre para emplacar o herói infernal
Um dos superpoderes de Hellboy, herói sobrenatural criado por Mike Mignola em 1993, certamente é sua resiliência. Há duas décadas habitando o ar rarefeito dos cinemas, sem nunca alcançar o sucesso ou o reconhecimento de seus pares, ainda assim cá está ele, à frente de mais um reboot, de outra reinvenção. "Hellboy e o Homem Torto" é a tentativa da vez.
O novo filme, assinado por Brian Taylor ("Adrenalina", "Motoqueiro Fantasma: Espírito de Vingança"), troca o escopo épico de seus antecessores por um registro mais modesto, alinhado com o orçamento de cinema independente. A escala da ameaça também encolheu: em vez de vilões capazes de pulverizar o planeta e dizimar a civilização, é o "Homem Torto" do título, demônio de intenções mais reservadas, quem assume o antagonismo.
É uma mudança que busca, mais uma vez, encontrar o público do "Vermelhão" fora das páginas dos gibis. Nesse ponto, a qualidade dos filmes não está em discussão, e sim sua aprovação popular. Guillermo Del Toro dirigiu o personagem em um par de filmes estranhamente belos. A sensibilidade criativa do cineasta mexicano encontrou o canal perfeito em histórias sobre criaturas abissais, feiticeiros seculares e um herdeiro da coroa do inferno que, na moral, só queria mesmo tomar uma cerveja.
"Hellboy" foi lançado em 2004 com toda a grandiosidade que o personagem merecia. Depois de uma produção em pé de guerra com o estúdio, contudo, o filme penou para encontrar seu público. Quatro anos depois, Del Toro lutou um segundo round com "Hellboy 2: O Exército Dourado", que mergulhava fundo em folclore e mitologia sem perder o faro para a ação. A conta foi bancada por um outro estúdio e, mesmo quase dobrando a renda do original, o filme não fez o barulho que justificasse uma terceira dose.
Nos bastidores, Del Toro e Mike Mignola não estavam exatamente na mesma página. O quadrinista não escondia sua insatisfação em ver sua criação sendo desenvolvida na mão de terceiros e clamava por mais controle criativo. HQs, no entanto, não são cinema, e a celeuma tornou-se um impasse inegociável. Sem o estusiasmo dos homens do dinheiro, a carreira de Hellboy entrou em hibernação.
Um terceiro filme veio em 2019, David Harbor ("Stranger Things") assumindo o personagem de Ron Perlman, em uma aventura de orçamento modesto dirigida por Neil Marshall ("Abismo do Medo"). Mignola, que colaborou no roteiro, pareceu totalmente escanteado. Esse "Hellboy" buscou o mesmo equilíbrio de aventura grandiosa e senso de humor ácido dos filmes de Del Toro e fracassou num oceano de histeria que não fez favores à marca.
"Hellboy e o Homem Torto", que retoma a série com os pés no chão, tem a vantagem de ser um filme muito melhor que seu antecessor (não que fosse difícil). Agora, o herói é defendido por Jack Kesy (da série "The Strain"), que faz um Hellboy mais taciturno e reservado. Mas o show agora é todo de Mike Mignola, que escolheu adaptar sua história favorita dos gibis e escreveu o roteiro, aumentando seu controle criativo.
"The Crooked Man" foi uma minissérie publicada em 2008 com arte de Richard Corben. Em 1958, nas Montanhas Apalaches, um Hellboy nômade encontra Tom Ferrell, nativo da região que retorna após décadas para pagar uma dívida antiga: iniciado como bruxo, ele nunca abraçou as artes sombrias mas se manteve vivo graças a um amuleto mágico. A região, como logo se descobre, é domínio do Homem Torto, empresário avarento do século 18 que retornou do inferno como um demônio.
O texto de Mignola para o filme, coescrito com o autor de livros de fantasia Christopher Golden, amplia a trama de maneira muito sutil, adicionando elementos e removendo outros para manter o orçamento abaixo da régua. O acréscimo mais evidente é Bobbie Jo Song (Adeline Rudolph), agente do Bureau de Pesquisas e Defesa Paranormal que acompanhava Hellboy numa missão antes de eles se envolverem involuntariamente nessa jornada demoníaca.
A aposta em "Hellboy e o Homem Torto" parece menos motivada por um ímpeto criativo e mais pela necessidade de manter a propriedade intelectual no jogo. Ainda sem data para entrar no mercado americano (o Brasil ganha o filme antes de todo mundo!), o filme é bem intencionado em explorar o personagem mais próximo de suas raízes no papel, mas pena em decolar pela aridez de sua produção.
Trocando em miúdos, o orçamento não tem bang para bancar o espetáculo visual do cinema de ação e aventura modernos, e tampouco o texto traz a intensidade e o medo que o classificariam confortavelmente como filme de terror. O meio termo da "guerrilha" pode soar bonito para alguns entusiastas, mas tenho certeza que, em algum ponto, os produtores de "Superman 4" e "RoboCop 3" pensaram na mesma desculpa.
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Quero receberEsse limbo no qual "Hellboy e o Homem Torto" se equilibra é mais grave quando vemos o imenso potencial do personagem e a mitologia brilhante traçada por Mike Mignola em toda sua trajetória. Existe uma grande saga, entrecortada por histórias curtas, que o cinema simplesmente não consegue dar conta. Talvez seja a hora de Hellboy fazer as malas. Mas não para desaparecer por completo: o herói no inferno teria só vantagens se levasse sua mão direita do destino para o conforto da TV. Me ouve, Mignola!
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