Por que Nicole Kidman não precisa de um abacaxi como 'O Casal Perfeito'
Nicole Kidman é uma das atrizes mais versáteis e talentosas de sua geração. Trafega de candidatos a blockbuster a filmes independentes com total desenvoltura, ziguezagueando entre cinema e TV de forma incansável. Seu trabalho mais recente, o drama "Babygirl", acabou de lhe render o prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza.
Com essa bagagem, portanto, fica difícil engolir um abacaxi como este "O Casal Perfeito" em seu currículo. Adaptação do best seller de Elin Hindebrand, a minissérie assinada por Susanne Bier é um mistério mequetrefe 100% descartável, em que gente muito rica, muito bonita e muito irreal se enrosca em uma trama de desejo, traição, dinheiro e assassinato. Desde os anos dourados de Sidney Sheldon é o esquema "viu um, viu todos".
Nicole, claro dá seu melhor para injetar alguma nuance em Greer Garrison Winbury, escritora de sucesso que junta a família para o casamento de um de seus filhos e vê a festa abreviada com a descoberta de um corpo. Como sua propriedade fica em uma ilha, todos os convidados são suspeitos. Um a um, do marido infiel (Liev Schreiber) à socialite francesa (Isabelle Adjani), passando pela noiva (Eve Hewson) e a própria anfitriã, todos teriam motivos para cometer o crime.
Se Greer parece um ser humano, e não um estereótipo ambulante, o crédito é todo de Nicole. Mas "O Casal Perfeito" encontra a atriz presa ao molde da "esposa triste e endinheirada" que a TV parece lhe reservar. É uma variação da personagem absorta em segredos que ela defendeu (muito bem) em "Big Little Lies" e (não tão bem) em "Nove Desconhecidos". Para uma atriz tão determinada a se arriscar, Nicole precisa quebrar esse padrão na TV.
De Batman a Kubrick
A boa notícia é que a carreira de Nicole Kidman, sempre vilipendiada por um ou outro projeto de quinta categoria, segue com sua aura imaculada. Foi assim desde que ela surgiu no cenário mundial ao fim dos anos 1980 no thriller "Terror a Bordo", imediatamente se posicionando no mapa hollywoodiano no ano seguinte com "Dias de Trovão".
Seria muito fácil para essa atriz australiana de beleza hipnotizante se posicionar como a estrela do momento sem muito esforço. Mas Nicole sempre gostou de ser desafiada e, em 1995, ano em que visitou Gotham City em "Batman Eternamente", ela expandiu radicalmente seus horizontes dramáticos nas mãos de Gus Van Sant no brilhante "Um Sonho Sem Limites".
Esse equilíbrio mostrou uma artista consciente de seu papel na indústria, ao mesmo tempo que profundamente comprometida com seu ofício. Ela saia sem hesitar de um drama denso como "Retratos de Uma Mulher" para a ação acelerada de "O Pacificador". Em 1999, porém, Nicole virou uma chavinha ao trabalhar com o então marido Tom Cruise em "De Olhos Bem Fechados", trabalho derradeiro de Stanley Kubrick.
Cantos inexplorados
Lançado em 1999, o drama acompanha o personagem de Cruise, um médico em uma jornada de frustração sexual noite adentro. Cada vez que Nicole entra em cena, porém, ela domina a cena por completo. Kubrick certamete percebeu a imensa superioridade dramática da atriz, que por sua vez apresentou uma performance complexa, de camadas insondáveis, ancorando o filme em sua humanidade despudorada.
O novo século a consolidou como estrela completa, consagrada em filmes como "Moulin Rouge!" e "Os Outros"; "As Horas", de 2002, marcou sua segunda indicação ao Oscar e primeira vitória. Em vez de se acomodar em sua posição, Nicole se arriscou mais uma vez em "Dogville", do diretor Lars von Trier.
Curiosamente, Nicole nunca pareceu muito à vontade quando trabalhou em produtos "de estúdio", em que a criatividade ficava em segundo plano. Mas para cada "Mulheres Perfeitas" e "A Feiticeira", a atriz espremia um "Reencarnação" ou "Margot e o Casamento", escolhendo os diretores que pudessem conduzi-la a cantos ainda inexplorados em seu trabalho.
O drama "Reencontrando a Felicidade" lhe rendeu outra indicação ao Oscar em 2010, numa época em que ela parecia diminuir seu ritmo. As escolhas também não ajudavam, com filmes menores, como "Reféns" e "Obsessão", marcando uma fase ruim coroada com o equivocado "Grace de Mônaco" em 2014.
O molde da esposa triste
Se o cinema não parecia acolher o talento de Nicole Kidman, mesmo com uma indicação ao Oscar por "Lion", a TV parecia um bom lugar para se reinventar. Claro que Nicole ainda apostava na ousadia da tela grande, como foi o caso de "O Sacrifício do Cervo Sagrado", que Yorgos Lanthimos dirigiu em 2017. Mas foi no streaming, no mesmo ano, em que ela reencontrou sua relevância na minissérie "Big Little Lies".
Foi o respiro para Nicole Kidman, mas também a criação de uma muleta criativa. Lá estava a atriz no cinema em "O Escândalo" e na TV como "esposa triste" de "The Undoing". Soltando a voz em "A Festa de Formatura" e sendo a "esposa misteriosa" em "Nove Desconhecidos". "Apresentando os Ricardos" garantiu mais uma indicação ao Oscar, enquanto "Expatriadas" a colocava como "esposa triste" em uma terra desconhecida.
Newsletter
O QUE FAZER EM SP
Qual a boa do fim de semana? Receba dicas de atrações, passeios, shows, filmes e eventos para você se planejar. Toda sexta.
Quero receberNão falta a Nicole Kidman vulto para quebrar esse molde. Afinal, ela sempre foi a força motriz de projetos que muitas vezes sequer sabiam o que fazer com ela. Vai entender o que se passava na cabeça de James Wan quando a escalou como mãe de Jason Momoa em "Aquaman" — sendo que ela poderia facilmente ter o papel de Amber Heard. "Esposa triste" no oceano?
Recarregando as baterias
A estrela, vá lá, tem seus motivos para encarar um produto tão qualquer nota como "O Casal Perfeito". Ela claramente se diverte em uma trama que não arrisca entrar em território desconhecido. Mesmo nos momentos mais dramáticos, em especial nos episódios decisivos, a trama ignora qualquer sugestão de risco. Nicole brilha até porque não há nenhum contraponto.
Para o público, os espinhos no caminho são um preço razoável a pagar para acompanhar uma carreira tão interessante. Talvez se acomodar em um estereótipo seja sua forma de recarregar as baterias antes de um trabalho que exija mais força dramática — como parece ser o caso de "Babygirl". Na TV, contudo, pode ser a hora de girar a roleta e nos dar uma outra faceta de Nicole Kidman. Chega de gente rica guardando mistérios de araque. Abacaxi, pode confiar, só é bacana na salada de frutas.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.