Demi Moore ressurge em grande forma no bizarro e fascinante 'A Substância'
Existem dois filmes respirando o mesmo ar em "A Substância". Um deles é uma reflexão brilhante sobre a obsessão por um padrão de beleza irreal e inalcançável levada ao extremo. O outro, por sua vez, é só o extremo, em que a construção de ideias conduzida até então de maneira brilhante da espaço ao mais puro cinema trash.
Não digo que eles estão em conflito porque eles não coexistem. A diretora Coralie Fargeat, que já havia surpreendido em 2017 com sua estreia no cinema, o vigoroso "Vingança", desenha aqui um ponto de ruptura claro. Suas decisões, por mais esdrúxulas e radicais, fazem parte de sua visão e estão alinhadas com cada movimento em "A Substância".
Em meio a este caos controlado, Demi Moore ressurge sob os holofotes no que possivelmente é a melhor interpretação de sua carreira. Em um naco dos anos 1990, mais precisamente entre "Ghost" e "Striptease", ela foi uma das atrizes mais bem pagas de Hollywood, à frente de sucessos como "Questão de Honra", "Proposta Indecente" e "Assédio Sexual".
O público, volátil, repentinamente parou de prestar atenção em Demi no cinema, mesmo que sua vida jamais tenha saído das manchetes. Essa percepção ajuda a entender sua escolha para interpretar Elisabeth Sparkle, estrela do cinema que coleciona prêmios e prestígio, mas que é colocada de lado por uma indústria desavergonhadamente voraz.
Quando "A Substância" começa, Elisabeth já se reinventou como musa fitness, à frente de um programa de TV que emula os vídeos de ginástica produzidos por Jane Fonda no começo dos anos 1980. Seu momento de glória, no entanto, claramente ficou para trás, e sua autoestima desmorona quando ela é dispensada sem cerimônias por um executivo de TV nojentão (papel de Dennis Quaid) que deixa claro que sua idade é o fator principal.
A ironia desse preâmbulo é posicionar Demi Moore, estonteante como nunca aos 61 anos, como vítima da mesma artilharia da "imagem perfeita" que atinge a qualquer pessoa que recorre a um filtro de imagem em redes sociais. Se Demi torce o nariz para seu reflexo no espelho e também sucumbe à percepção de terceiros, o resto da humanidade não tem a menor chance.
É perfeitamente plausível, portanto, que Elisabeth ouça a sugestão de um desconhecido e experimente uma nova droga que "liberta a melhor versão de si mesmo". Na prática, é um mote realista. Demi topa se submeter aos procedimentos - tudo intuitivo, feito de forma solitária no banheiro de sua casa - e, como uma célula em mitose, vê Margaret Qualley literalmente brotar de seu corpo.
"A Substância", claro, habita a seara da fantasia - como tal, ela vem com regras. Assim como acontece em "Gremlins", desviar-se delas pode gerar consequências catastróficas. Com isso em mente, Elisabeth e sua "cópia", que responde por Sue, dividem sua existência, cada uma com direito a sete dias conscientes por vez. Sue toma o lugar da "matriz" na TV e logo é alçada como uma nova estrela; Liz, por sua vez, recolhe-se em seu apartamento, cada vez mais retraída do convívio social, cada vez em maior conflito com o espelho.
Coralie Fargeat não abre espaço para sutileza ao materializar a discussão sobre "nossa melhor versão". Ela tampouco deixa nas entrelinhas o desprezo da cópia, jovem e ávida por experiências, por seu corpo original, que em sua visão lhe atravanca a vida. O equilíbrio entre duas existências, sob o ponto de vista de quem experimenta fama, fortuna e desejo, seria injusto.
A diretora exibe controle narrativo afiadíssimo para, sob o prisma do cinema fantástico, trazer sem proselitismo uma discussão sobre a escalada, estimulada pelo culto à celebridades, para alcançar e manter padrões estéticos irreais. Mesmo quando a protagonista pe colocada em xeque por suas próprias escolhas, ela hesita em retroceder. Imagem, no caso, é tudo.
"A Substância" é filmado como um pesadelo lúcido. Ângulos incomuns e distorções de foco criam o vocabulário visual do isolamento vivido por Moore. Seu conflito silencioso com Margaret Qualley escala para ruídos que finalmente irrompem na fúria de uma personalidade frustrada e fragmentada. O minimalismo cede à violência. Nesse ponto o filme abraça uma guinada que deixaria Peter Jackson circa "Náusea Total" e "Fome Animal" orgulhoso.
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Quero receberEssa ruptura sela o enlace definitivo de "A Substância" com o body horror, gênero em que a transformação física executada da maneira mais grotesca assume a narrativa. É uma escolha que condiz com a escalada aos extremos proposta pelo filme e dialoga com o próprio dilema experimentado por Demi Moore/Margaret Qualley.
O caminho do horror biológico, porém, é delicado e escorregadio. David Cronenberg talvez seja seu maior expoente, como visto em "A Mosca" e "Crash". Recentemente, Julia Ducournau encarou a fera de forma esfuziante em "Titane". Fargeat, por sua vez, perde o pulso, até então impávido, para costurar as duas partes de seu filme.
Talvez tenha lhe faltado maturidade para buscar um entrosamento maior com sua equipe, em especial com seu time de montagem. Aparar as arestas gritantes poderia aliviar a metragem sem perder a intensidade, já que os 20 minutos derradeiros de "A Substância" ameaçam minar uma discussão até então conduzida de forma espetacular em um filme irretocável.
É compreensível que Coralie Fargeat, que teve seu roteiro premiado em Cannes, tenha buscado um clímax tão repulsivo e extravagante para coroar sua obra com uma assinatura indelével. Não precisava. É na imagem de Demi Moore ante o espelho, congelada mortalmente pela insegurança, que "A Substância" encontra sua força. Quando uma atriz se dispõe a expor sua vulnerabilidade de maneira tão honesta, madura e corajosa, outros artifícios se tornam supérfluos.
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