Roberto Sadovski

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Opinião

30 anos de 'Pulp Fiction': como a obra de Tarantino mudou o rumo do cinema

"O John Travolta já morreu, não tô entendendo mais nada!" O silêncio do cinema que eu assistia a "Pulp Fiction" foi quebrado pela revolta de um anônimo desavisado. Na sala escura, algumas risadas veladas. Atraídos pelo nome de Bruce Willis, muita gente embarcou na sessão atrás de mais um filme de ação - atrás, na verdade, do mais do mesmo confortável em uma tarde de domingo.

No lugar disso, plateias em todo o mundo testemunhavam um ponto de ruptura que alterava para sempre a estrutura do cinema moderno. De uma só tacada, Quentin Tarantino mudava a percepção de filmes independentes, ressuscitava a noção do cinema de autor e nublava a linha que separava o "comercial" e a "arte". Como o gritalhão revoltado citado acima provou, a indiferença não era uma opção.

Certamente não foi para Danny DeVito, que fechou um acordo de produção menos de dez minutos após conhecer Quentin Tarantino. "Cães de Aluguel" ainda não havia sido lançado, mas o ator e produtor estava impressionado com a segurança de seu diretor. Pouco mais de um ano depois desse papo inicial, DeVito recebeu um manuscrito que lia na primeira página: "'Pulp Fiction', de Quentin Tarantino, Versão Final".

Como o projeto estava na Miramax, havia um certo temor pela interferência do produtor Harvey Weinstein, conhecido por retalhar os filmes que terminavam sob suas asas. DeVito, porém, blindou Tarantino em sua produtora, Jersey Films, dando a ele a palavra final na escolha do elenco e o direito de ter o corte final. No fim das contas, "Pulp Fiction" seria revelado ao mundo exatamente como seu criador imaginara.

O que ninguém esperava - bom, talvez à exceção do próprio Tarantino - era o impacto que "Pulp Fiction" teria não só na indústria, mas também na percepção acerca de um cinema fora dos padrões dos grandes estúdios. Sua montagem não linear já denunciava a segurança do diretor na forma que a plateia absorveria seu filme. Havia também a overdose de violência e a linguagem "inapropriada", os diálogos coalhados de referências pop e as diversas tramas interconectadas.

Quando o filme estreou no Festival de Cannes, abocanhando a Palma de Ouro, a nostalgia banhada com o verniz de modernidade engendrada por Tarantino começou sua jornada para se tornar um fenômeno. Se Bruce Willis quebrava o molde de "herói de ação", e John Travolta experimentava um novo pico em sua carreira, atores como Samuel L. Jackson, Ving Rhames e Tim Roth ganharam os holofotes. E Uma Thurman se tornou uma estrela de primeira grandeza.

A recepção de seus pares entre as paredes de um festival de cinema se tornou febre quando "Pulp Fiction" finalmente chegou aos cinemas americanos em 14 de outubro de 1994 - no Brasil, a estreia veio em março do ano seguinte, na aba das sete indicações que o filme teve ao Oscar. O público, impactado pela infusão de criatividade e pelo júbilo de testemunhar algo novo, abraçou o filme - foram US$ 213 milhões nas bilheterias globais, com um orçamento de US$ 8 milhões.

NA ESTEIRA DE "PULP FICTION"

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Um sucesso dessa magnitude, claro, oxigena todo seu ecossistema. Logo, todos os estúdios além de Hollywood - das majors aos independentes - trataram de buscar seu próprio "Pulp Fiction". A fórmula de diálogos espertos + senso de humor + violência contaminou a indústria de tal forma que ainda hoje, 30 anos depois, uma pá de produtores, roteiristas e diretores buscam deixar seus projetos mais "tarantinescos".

Nem todos conseguem, claro, porque eles não são Quentin Tarantino. "Coisas Para Fazer em Denver Quando Você Está Morte" (1995) testou a fórmula e fracassou, ao passo que "O Nome do Jogo" (1995) acertou ao amarrar o texto excepcional com um elenco que trazia não só John Travolta, mas também Danny DeVito - desta vez à frente das câmeras.

Nos anos seguintes, os blockbusters tradicionais dividiram espaço com obras claramente inspiradas por "Pulp Fiction" como o excepcional "Irresistível Paixão" (1998), "Vamos Nessa!" (1999) e "À Sangue Frio" (2000). Do outro lado do oceano, Guy Ritchie fazia sua salada europeia com "Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes" (1998). E ninguém precisa perguntar ao diretor Drew Goddard seu manual para fazer "Maus Momentos no Hotel Royale" (2018).

TARANTINO DEU UMA PAUSA

"Pulp Fiction" foi concebido por Tarantino com seu colega de locadora, Roger Avery, como uma antologia com três histórias e três diretores. Então Cães de Aluguel" aconteceu quando Harvey Keitel leu o roteiro, e Quentin passou a ser cortejado pelos estúdios. Foi quando Avery recebeu uma ligação do parceiro para que eles retomassem o projeto e a dupla se isolou em Amsterdã para desenhar as histórias que se tornariam "Pulp Fiction", agora com a decisão de Tarantino dirigir o filme todo.

O elenco foi pincelado aos poucos seguindo os instintos do diretor. Travolta, que estava distante do sucesso desde a série "Olha Quem Está Falando", era ídolo de Tarantino e enxergou a grandeza do papel e o que ele poderia fazer por sua carreira. Bruce Willis, que era fã de "Cães de Aluguel", foi trazido por Harvey Keitel. Samuel L. Jackson havia perdido o papel de Jules Winnfield, mas voltou para uma segunda leitura - sem saber que estava testando mais uma vez pelo personagem - por insistência de seu agente. Às vezes as estrelas de fato se alinham.

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Quando o impacto de "Pulp Fiction" reverberou no mundo do cinema, Quentin Tarantino viu seu nome se tornar uma marca. Assim como Steven Spielberg e, mais recentemente, Christopher Nolan, sua assinatura muitas vezes é toda a validação com o público que um filme precisa. Curiosamente, ele não se apressou em voltar ao set de filmagem.

HORA DE FECHAR A LOJA

"Jackie Brown", seu longa seguinte, foi lançado em 1997, e nem de longe trazia a estrutura de "Pulp Fiction". Tarantino optou por adaptar um livro do escritor Elmore Leonard e mostrou uma abordagem mais tradicional, ainda que cheia de personalidade, em seu trabalho de direção. O hiato para "Kill Bill" foi ainda maior: seis anos para apresentar seu épico de vingança e artes marciais, concebido com Uma Thurman e lançado em duas partes - o "Volume 2" chegou aos cinemas em 2004.

A partir daí, cada movimento de Tarantino era um acontecimento. Em 2005 ele dirigiu um segmento de "Sin City", adaptação dos quadrinhos de Frank Miller por Robert Rodriguez, e se juntou ao cineasta texano mais uma vez dois anos depois no projeto "Grindhouse", um fracasso sabotado por Harvey Weinstein. Sua metade do projeto, "Á Prova de Morte", foi lançada em versão completa nos cinemas fora dos Estados Unidos.

O fim da relação com a Miramax viu Quentin trabalhando com um grande estúdio sem ceder uma fração de sua autonomia. Em 2009 ele colocou Brad Pitt à frente de "Bastardos Inglórios", e flertou com o western em seus dois filmes seguintes, "Django Livre" (2012) e "Os Oito Odiados" (2015). Desde 2019, ano em que lançou "Era Uma Vez em... Hollywood", ele deixou claro que tem mais um filme na manga antes de fechar a lojinha.

Fiz exatamente essa pergunta em nosso segundo papo, que aconteceu justamente por conta do lançamento de "Era Uma Vez em... Hollywood". "Eu vejo cada filme como uma montanha, e já escalou o monte Fuji, já subi o Everest", disse. "Quando eu chegar no décimo filme serão três décadas dedicado a isso, então quero terminar esse recorte de minha vida em meus próprios termos." E depois disso? "Não sei. Posso trabalhar com televisão. Posso escrever peças, escrever livros", completou. "Eu acho que serei um escritor."

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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