'O Aprendiz' conta a origem do monstro chamado Donald Trump
Donald Trump, na interpretação brilhante de Sebastian Stan em "O Aprendiz", é um sujeito egocêntrico e narcisista. Um mentiroso contumaz de ambição imensurável, com absolutamente nenhum freio ético ou moral que o impeça de moldar a realidade até ela se tornar a materialização de seus desejos. Um monstro incapaz de sentir ou expressar qualquer emoção.
Ninguém precisa, contudo, ir ao cinema para decifrar a personalidade do ex-presidente dos Estados Unidos. Como Trump encontra-se em plena campanha para voltar à Casa Branca, basta ouvir um de seus comícios ou acompanhar uma de suas entrevistas para absorver sua versão abjeta da realidade. O empresário e político é dolorosamente transparente, sua figura laranja da vida real uma extensão de sua representação na ficção.
Não é regra, claro, mas uma boa cinebiografia é geralmente habilidosa em iluminar seu protagonista, ressaltando algum traço de sua individualidade que justifique a exploração dramatizada de uma pessoa real —estou aqui pensando em "Steve Jobs", "O Lobo de Wall Street" ou "Oppenheimer". "O Aprendiz", por sua vez, opta por um caminho simplista, linear e, não raro, enfadonho.
O ponto de partida é um Donald Trump ainda jovem, um empresário que, aos poucos, crava suas garras na carne de uma Nova York fragilizada por uma crise econômica e social. Existe tensão familiar, acentuada pela necessidade de Trump se provar para seu pai, Fred (Martin Donovan). Mas o filme se limita a uma coleção de sucessos de um homem rico, poderoso e cafona, um vendedor de carros usados que soube empacotar em embalagem de ouro seu melhor produto: ele mesmo.
Essa abordagem conservadora se torna ainda mais surpreendente —e, devo dizer, decepcionante— quando a pessoa no comando é o diretor Ali Abbasi, responsável pelos excepcionais "Border" e "Holy Spider". Sua visão aguçada para decodificar a condição humana, evidente em trabalhos que oscilam entre o fantástico e o mundano, aqui parece perdida, rendida a uma personalidade que, dado seu peso no cenário global como figura midiática a força política, sugeria um protagonista mais suculento.
Talvez o erro de Abbasi tenha sido a escolha do biografado. Donald Trump, tanto o da ficção quanto o da vida real, é uma figura desinteressante. Não existe nele nenhuma nuance, não há espaço para o contraditório, não há o que decifrar além do que ele já deixa explícito. Em um país que não se furta em celebrar a estupidez, essa honestidade em ser grotesco o levou à presidência. Em uma narrativa cinematográfica, porém, não sobra muito a explorar.
O personagem de fato interessante em "O Aprendiz" é o advogado Roy Cohn, que ganhou notoriedade em 1951 quando, ainda muito jovem, trabalhou na promotoria durante o julgamento que condenou o casal Julius e Ethel Rosenberg por espionagem, crime que resultou em sua execução. Nos anos 1970, Cohn passou a atuar em Nova York, estendendo sua influência política não raro de forma total antiética.
Cohn tomou Trump como seu protegido e o guiou no começo de sua vida empresarial, ensinando ao jovem as "regras do jogo", enfatizando seu desprezo por qualquer inclinação moral. Paradoxalmente, era o mesmo sujeito que promovia festas libertinas e que levava uma vida dupla, escondendo a todo custo sua homossexualidade. Sua cisão com Trump termina como nota secundária, o que é lamentável já que sempre que Jeremy Strong está em cena, mesmo sem perder alguns maneirismos do Kendall Roy de "Succession", é uma figura fascinante.
Claro que Roy Cohn não atrai holofotes como Donald Trump. "O Aprendiz" segue então a cartilha da biografia careta. E tome Ivana (a ótima Maria Bakalova) cortejada e dispensada de forma misógina por Trump. E tome Trump se afundando em dívidas para erguer sua Trump Tower. E tome Trump ocupando cada espaço da mídia para se tornar uma celebridade.
Nada que seja novidade, nada que ele mesmo não tenha martelado incessantemente, seja como empresário implacável, personalidade da TV ou presidente. Mas existe, confesso, um prazer perverso em testemunhar essa coleção de obscenidades na tela grande. Alguma coisa, claro, Ali Abbasi fez certo. Do contrário, o próprio Donald Trump não teria feito tanto esforço para barrar o lançamento de "O Aprendiz". Perdeu. De novo.
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