Coppola passa legado a limpo no fascinante e imperfeito 'Megalópolis'
Existe um certo desconforto ao longo de "Megalópolis", épico que marca o retorno de Francis Ford Coppola à direção após 13 anos de inatividade. É como se suas partes narrativas, magníficas quando observadas separadamente, penassem ao ser encaixadas. O resultado é uma experiência visualmente fascinante, flertando constantemente com o mais puro caos.
Levando-se em conta o histórico de Coppola para materializar "Megalópolis", não é exatamente uma surpresa. Interrompido após os ataques do 11 de Setembro, que impossibilitaram em termos morais e práticos o desenvolvimento de uma história sobre uma Nova York reconstruída após uma tragédia, o projeto foi reconfigurado ao longo dos anos, agregando não só as inovações na tecnologia de fazer filmes como a sensibilidade social de um mundo em constante evolução.
O resultado é menos um filme e mais uma declaração de um artista sobre o estado das coisas. Tendo como ponto de partida um paralelo com a queda do Império Romano, um estado utópico tomado pela corrupção e pelo crime, Coppola desenhou um manifesto sobre os Estados Unidos contemporâneo e sua decadência política e cultural embrulhado, por fim, em uma embalagem otimista.
Nosso avatar em "Megalópolis" é Cesar Catilina (Adam Driver), inventor, arquiteto e parte da elite que comanda Nova Roma —basicamente uma Nova York futurista em um Estados Unidos alternativo. Bem-sucedido, ainda que sujeito a vícios mundanos, ele observa com desdém seus pares mergulhados num furor hedonista, ao mesmo tempo em que o cidadão comum padece na pobreza.
Com a sociedade à beira do colapso, Cesar oferece uma alternativa: a construção de um paraíso urbanístico utópico erguido a partir do megalon, um material de construção revolucionário. Suas ideias entram em choque com os planos do prefeito Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito), que, por sua vez, acredita na alocação de recursos para a construção de um cassino, o que geraria dividendos imediatos.
É no choque da utopia com o pragmatismo que "Megalópolis" desenvolve seus dilemas e expõe a humanidade fragmentada de seus protagonistas. Cesar vive com a culpa do suicídio de sua esposa, o que emperra seu relacionamento com a apresentadora de TV ambiciosa, Wow Platinum (Aubrey Plaza).
Ao mesmo tempo, o arquiteto se vê atraído por Julia (Nathalie Emmanuel), filha do prefeito que parece compartilhar com ele uma habilidade secreta: a de congelar o tempo.
Coppola usa esse cenário para pintar alegorias e paralelos com grandes dilemas do mundo moderno, de nossa obsessão com a vida privada de celebridades à ascensão de figuras políticas equilibradas entre o populismo e a farsa. Indo da tragédia à comédia sem cerimônia, o diretor por vezes amarra suas ideias com um discurso inocente, ginasial, que perde a conexão com os temas que busca representar.
Essa inconsistência de tom e gênero, somada a algumas soluções dramáticas que soam datadas, e núcleos narrativos distintos suando para encontrar equilíbrio (meu favorito é o triângulo totalmente aleatório formado por Aubrey Plaza, Shia LaBeouf e Jon Voight), impedem que a trama central de "Megalópolis" decole.
Ainda assim, existe beleza em cada fresta. Coppola opta por uma poesia visual para representar o horror e a expectativa por um futuro que já estaria em curso e consegue, diria com certa frequência, construir momentos que só seu olhar é capaz de proporcionar. São momentos em que sua câmera não precisa de palavras para reencontrar a arte no artesanato do cinema.
A megalomania da produção, por óbvio, é um fator fundamental para absorver "Megalópolis". Como um desbravador que não raro operou às margens do sistema, Coppola bancou os US$ 120 milhões de orçamento e se livrou de quaisquer interferências ao longo do processo. Essa liberdade artística é uma bênção e, também, uma maldição, já que um filme é fruto, sim, da visão de uma artista, mas sua execução existe como esforço coletivo e colaborativo.
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Quero receberPara o bem ou para o mal, portanto, "Megalópolis" é a manifestação do trabalho de um artista completamente sem filtros. Existe sinceridade e otimismo no mundo tecido por Coppola, mesmo que sua visão neste recorte seja por vezes ingênua, até mesmo enfadonha, mesmo que entregue num pacote grandioso.
Talvez falte uma certa leveza em sua realização, uma curiosidade na mistura dos elementos que a mão de um gênio tarde a assimilar.
Por outro lado, estamos falando do realizador de alguns dos filmes mais espetaculares da história, então Coppola sempre terá o benefício da dúvida. "Megalópolis", afinal, passa a limpo tanto seu próprio legado como a história do cinema americano contemporâneo.
Ele traz o experimentalismo dos anos 1960 e a ousadia da carga politica e social dos anos 1970, os excessos e decadência dos anos 1980 e o embate de estilo sobre substância dos anos 1990 —tudo polido e brilhante com o artificialismo do novo século. Convenhamos, não é pouco ou para qualquer um.
A força das ideias de Coppola fica evidente com o timing da chegada de "Megalópolis" aos cinemas, no momento em que os Estados Unidos, nas palavras do próprio diretor, terão de escolher entre a manutenção da democracia e o abismo da ditadura. Se os paralelos são inevitáveis é porque o mundo teima em não alterar o jogo: ontem e hoje, o panorama da classe abastada preocupada com os próprios bolsos, e não com o povo que lhe coloca no poder, segue imutável.
Talvez o público tenha rejeitado "Megalópolis" num primeiro momento por buscar no cinema uma fuga da realidade, e não sua confirmação. Ao seguir suas próprias regras, Coppola criou uma anomalia no atual cenário da indústria, que privilegia produtos de fácil assimilação.
O cineasta entende, contudo, que a separação de "arte" e "comércio" é uma conversa que já nasce embolorada, já que um filme é também um produto —o que os diferencia é a apresentação e a percepção.
Nesse sentido, "Megalópolis" não seria um produto fácil ou palatável, mas é uma obra que recompensa nossa atenção com fragmentos brilhantes do mais puro cinema. É inegável, de toda forma, que Francis Ford Coppola criou um filme muito estranho. Apesar de sua filmografia brilhante —ou talvez por causa dela— o cineasta conta com o tempo para que sua obra encontre seu lugar de reconhecimento. Sempre o tempo.
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