'Ainda Estou Aqui' resgata memória do Brasil que teima em ignorar o passado
Era um dia normal, 20 de janeiro de 1971, quando Rubens Paiva foi preso em casa por militares à paisana. Os agentes, armados, o escoltariam para "prestar um depoimento". Ele colocou um terno, despediu-se da mulher e dos filhos, partiu dirigindo o próprio carro —e nunca mais voltou para casa. O engenheiro e ex-deputado foi torturado e morto, tornando-se mais uma das vítimas da ditadura militar que por duas décadas sufocou o Brasil.
"Ainda Estou Aqui", contudo, não é sobre a ditadura. É um filme político, claro. Mas o trabalho do diretor Walter Salles —arrisco dizer que é seu melhor, o que não é pouco por se tratar do responsável por "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta"— volta seu olhar não para os porões militares, palco de tortura e morte, e, sim, para quem ficou para trás. Para quem teve a vida afetada profundamente pela mão de um estado opressor.
Foi essa a condição em que se encontrou Eunice Paiva após o desaparecimento de seu marido. Sozinha ao lado de cinco filhos, contando com o apoio de amigos em uma sociedade que muitas vezes prefere olhar para o outro lado, ela precisou se reinventar para manter a engrenagem da vida funcionando. Tamanha resiliência, depois de um ato de violência tão perverso, foi o tema do livro autobiográfico lançado em 2015 pelo filho do casal, o escritor Marcelo Rubens Paiva.
Trabalhando com o roteiro estelar de Murilo Hauser e Heitor Lorega, Walter Salles recupera uma história que espelha o Brasil do período. A casa dos Paiva, sempre de portas abertas, era um ponto de luz em meio às trevas da ditadura. O casal recebia amigos para discutir música, para celebrar a vida, para refletir sobre os rumos da política no país. Rubens (papel estelar de Selton Mello), após retornar de um período fora do país, ajudava os brasileiros exilados pelo regime repassando cartas ao seus familiares. O perigo sempre esteve à espreita.
O foco narrativo aqui, contudo, é Eunice. "Ainda Estou Aqui" coloca nela não só a ponta de esperança que conduzia os brasileiros apequenados pelo regime, mas também a imensa força para não sucumbir ao desespero e encontrar, ante uma tragédia silenciosa, o impulso para continuar lutando. Os militares, afinal, ficaram calados por décadas acerca do destino de Rubens, mantendo uma mentira insustentável. Eunice, por sua vez, nunca desistiu de elucidar o destino do marido.
Essa complexidade é traduzida em uma interpretação não menos que espetacular de Fernanda Torres. A atriz surge com um trabalho contido, de emoções encapsuladas, retratando assim a grandeza de Eunice ao se tornar a rocha na qual sua família iria se reconstruir. É um trabalho de pequenos gestos, de decisões doloridas, em que a luz do amor de uma família trafega pelas sombras —reais e abstratas— para se refazer.
De certa forma, a tragédia da família Paiva representa não só o abismo do Brasil durante a ditadura, mas também sua tenacidade ao se reerguer. O nefasto regime militar foi finalmente abolido em março de 1985, quando um civil assumiu novamente a presidência. Nossa democracia é frágil, recentemente ameaçada por um grupo político sem a menor vergonha em louvar a ditadura —e sedento por um golpe capaz de restaurá-la.
O fato de esse movimento ter fracassado mostra que a história precisa ser constantemente colocada sob o holofote para jamais ser esquecida. "Ainda Estou Aqui" cumpre, portanto, papel importante de arte como objeto de reflexão, como agente de um senso de urgência necessário para oxigenar a percepção do cidadão. Eunice Paiva obteve vitórias sofridas, tornando-se símbolo de um Brasil possível.
"Ainda Estou Aqui", após colecionar prêmios em festival dentro e fora de nossas fronteiras, estreou há uma semana e já levou mais de 400 mil pessoas aos cinemas. São sessões lotadas, carregadas de emoção, de um país que mais uma vez pode se enxergar na tela grande —um retrato difícil, porém necessário. Existe apetite voraz por filmes para adultos. Nosso cinema não precisa ter uma só nota.
Existe, por fim, uma obra de impacto e sensibilidade, sem pudor em abordar temas dilacerantes e sem receio em ser cinema. Um cinema que não nos deixa esquecer. Muitas vidas foram perdidas ao longo da ditadura militar. "Ainda Estou Aqui" recupera, ao entrelaçar a profundidade de um drama familiar no cenário de uma tragédia política, os fragmentos de sua memória.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.