Bonitinho e ordinário, 'Wicked' é triunfo de suas bruxas espetaculares
Saborear um musical da Broadway certamente é um gosto adquirido. A construção de uma narrativa por meio de canções é um truque que, mal aproveitado, cansa muito rápido. Além disso, sua natureza lúdica funciona bem melhor, como experiência, nos palcos. É entretenimento, claro, e Hollywood funciona com esse combustível.
Traduzir um musical para o cinema tem seus percalços e, se às vezes o resultado é extraordinário, como "A Noviça Rebelde" e a versão de Steven Spielberg para "Amor, Sublime Amor", em outras ele mergulha na mediocridade de uma arapuca para turistas, o caso do malfadado "O Fantasma da Ópera" e de "Cats" (eu sei, a gente não deve nunca mencionar esse desastre).
"Wicked" repousa confortavelmente em algum lugar no meio desse caminho (de tijolos amarelos). A adaptação demorou para saltar aos cinemas até encontrar seu condutor em Jon M. Chu ("G.I. Joe - Retaliação", "Podres de Ricos"), que apresenta aqui o primeiro ato do musical —a segunda parte está agendada para o ano que vem. Se a trama é a repetição de meia dúzia de convenções de contos de amizade e amadurecimento, sua execução consegue, por vezes, o encantamento de uma história mergulhada em magia.
Seu maior trunfo —talvez o único, mas aquele que compensa qualquer deslize— é a escalação inspiradíssima de suas protagonistas. Cynthia Erivo, premiada na Broadway por "A Cor Púrpura" e indicada ao Oscar pelo drama "Harriet", interpreta Elphaba, fadada a se tornar a Bruxa Má do Oeste. Já a popstar Ariana Grande é Glinda, a Bruxa Boa do Norte.
Juntas, elas trazem graça, sobriedade, conflito e emoção a uma história que é basicamente "O Mágico de Oz Begins", explicando tudo do clássico de 1938 que não precisava ser desvendado. Sempre que o tom insiste em ser uma bagunça, saltando sem muito critério de fábula pueril às tintas mais pesadas do autoritarismo e preconceito, o filme conta com Cynthia e Ariana para recolocar o trem nos trilhos.
"Wicked" começa, justamente, no final de "O Mágico de Oz", quando Elphaba é morta por uma certa Dorothy e o povo da terra mágica celebra sua derrota —o clima decididamente insensível contrasta com a explosão de cores e música. Glinda surge em meio aos festejos e explica, meio a contragosto, como se deu sua amizade improvável com a Bruxa Má.
Daí somos transportados de volta no tempo à Shiz, um simulacro de Hogwarts onde Glinda chega como patricinha deslumbrada e ultra popular, certa de que todas as oportunidades pousarão com facilidade em sua mão. Ela é obrigada pela diretora, Madame Morrible (Michelle Yeoh), a dividir seu quarto com Elphaba —verde de nascença, rejeitada pelo pai e originalmente ali para acompanhar a irmã, Nessarose (Marissa Bode), ela ganha espaço ao demonstrar habilidades mágicas reais.
A animosidade das duas, como reza o clichê, aos poucos cede para o respeito mútuo, que só estremece com a proximidade de ambas com o príncipe Fiyero (Jonathan Bailey), que arrasta a asa para Glinda, mas se encanta com Elphaba. O triângulo, assim como a trama dos animais que, aos poucos, perdem sua voz, e a posterior revelação mundana do Mágico (Jeff Goldblum), custam a colar como narrativa.
A essa altura, contudo, estes percalços não fazem muita diferença. Juntas ou separadas, afinal, Cynthia e Ariana são sempre um deleite. A primeira traz peso dramático à sua jornada pessoal de superação e autoaceitação, em uma interpretação que encontra a humanidade em meio a um mundo de conto de fadas. Já a segunda tem timing cômico absolutamente impecável, adicionando camadas a uma personagem que, em mãos menos capazes, afundaria no lugar-comum.
Se os dotes dramáticos de Cynthia Erivo e Ariana Grande estão bem calibrados, quando elas soltam a voz o nível torna-se estratosférico. Uma pena, contudo, que "Wicked" perca o brilho justamente nesse departamento: apesar de algumas músicas decentes, como "Popular" e "Defying Gravity", a trilha de "Wicked" é uma decepção sem uma melodia memorável sequer.
Felizmente, a falta desse instante de celebração não arranha a experiência de "Wicked". Jon M. Chu certamente sabe transformar o artificialismo digital de Oz em espetáculo, mas o coração da trama está no equilíbrio de suas protagonistas, em sua amizade insuspeita e sua habilidade quase sobrenatural de converter canções aquém de seu talento em momentos de —com o perdão do clichê— pura magia.
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