Lenny Kravitz celebra espiritualidade em show correto e de muitos acertos
"Desculpem, eu estava tentando chegar até vocês." Lenny Kravitz já coroava o bis de um show intenso com "Let Love Rule", single de seu álbum homônimo de estreia, quando decidiu abraçar a turma na pista do Allianz Parque, em São Paulo, no sábado (23). Desceu do palco e, cercado de seguranças, fez sua firula. O público, claro, adorou.
Lenny, por óbvio, entende desse riscado de ser rockstar — ou popstar, questão de ângulo. Veterano com 35 anos de carreira e 40 milhões de álbuns vendidos, quando números tão expressivos ainda significavam alguma coisa, ele soube desde o começo envelopar sua música — uma mistura que vai de Hendrix a Curtis Mayfield, uma pitada de soul, synth pop e muito rock de arena — em um pacote sexy e sofisticado. O "produto" que Lenny vende melhor é o próprio Lenny.
Ao vivo, felizmente, a mistura tem mais prós do que erros. Kravitz pode não ter grandes álbuns, mas acerta no artesanato de ótimos singles. A noite amena num Allianz cheio, mas longe de estar lotado, abriu com a boa "Bring It On", de "It's Time for a Revolution", e seguiu a cartilha do pop moderno, com um palco extremamente bem produzido e uma banda absurdamente afiada.
Ainda assim, a plateia começou morna, decodificando aos poucos o setlist escolhido por Kravitz. Quando ele soltou a doce "Stillness of Heart" e entregou os vocais ao público por longos minutos, a turma respondeu de acordo. "Human", single do novo álbum, "Blue Electric Light", mostrou-se uma adição poderosa à lista de hits do cantor. A partir dela o show engrenou uma segunda, seus picos de entusiasmo entrecortados por alguns vales de indiferença.
A consulta ao celular se intensificava quando Kravitz arriscava alguma canção com menos personalidade, como a baladinha de autoajuda "Believe" ou a correta "Low", que parece trilha de anúncio de calça jeans dos anos 2000. Quem foi checar as redes sociais, contudo, perdeu a versão matadora de "Fear", também de seu álbum de estreia, que mostrou o entrosamento de sua banda em raro momento que o show permite algum improviso — existe beleza em metais soprados por pulmões humanos e não saídos de sintetizador.
Em meio à música, Lenny se mostra um showman completo. Ele se move pelo palco com a confiança — e a estampa — de um modelo na passarela. Quando toma o microfone para dizer o quanto está feliz em voltar ao país, cada frase brota de uma voz grave e bem compassada. A forma física invejável é convite para a turma se matricular na academia no dia seguinte. Kravitz faz da sedução de seu público uma forma de arte.
Seus predicados, contudo, não escondem o fato de ele ser um artista dúbio. A turma roqueira por vezes o considera pop demais; já a massa radiofônica acha que ele é alternativo demais. Alheio a essa balança, Lenny Kravitz arrisca com sua música uma abordagem dos caminhos da fé na condição humana, abraçando em sua arte relacionamentos e sua própria identidade e crescimento espiritual.
Quando a música vai para esse lugar pessoal, a conexão é mais forte. Foi assim do hit "It Ain't Over 'Til It's Over" até o encerramento apoteótico com "Are You Gonna Go My Way", passando pelas inevitáveis — e festejadas — "Always on the Run", "American Woman" e "Fly Away". Foi a festa do Y2K em total ritmo de nostalgia.
Ser astro profissional consta no currículo de Lenny há décadas, e sua apresentação — intensa e grandiosa — é reflexo dessa estrada. No Brasil, contudo, ele parece verdadeiramente confortável, as intervenções soam genuínas. Não é à toa: em 2007, pouco depois de sua primeira visita, o músico comprou uma fazenda no interior do Rio de Janeiro: "O Brasil fez de mim um fazendeiro". Em São Paulo, quem diria, Lenny Kravitz reencontrou o caminho de casa.
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