Roberto Sadovski

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Opinião

Irretocável, 'Senna' celebra época em que éramos todos campeões

Ayrton Senna liderava o grande prêmio de San Marino, na Itália, em 1° de maio de 1994. Antes da prova, o piloto brasileiro havia alertado as autoridades do campeonato sobre a instabilidade da pista, que no dia anterior fora palco do acidente que vitimou um colega, Roland Ratzenberger. Na sétima volta, uma falha mecânica na Williams de Senna o fez atingir violentamente uma barreira de concreto na curva do Tamburello. Ele tinha 34 anos.

"Senna", minissérie que dramatiza a trajetória do piloto, abre justamente com essa cena. Sem sensacionalismo, sem espetacularização.

A lente de Vicente Amorim, diretor geral da série, salta para os olhos do espectador que acompanhava a corrida em mais uma manhã de domingo, compartilhando o choque, o impacto e a profunda tristeza. É uma forma ousada e contundente de começar essa história. A única forma.

Ao optar por esse ponto de partida, "Senna" remove toda antecipação pela tragédia. Em vez disso, abre espaço para celebrar a vida e o legado do piloto que se tornou um dos maiores ícones do esporte em todo o mundo —e um dos maiores ídolos populares do Brasil.

A série podia seguir vários caminhos, do novelão ao cinema-coach com mensagem de superação. Amorim, contudo, evita estes obstáculos ao se ater a uma pergunta básica: o que fez de Senna um ídolo?

Gabriel Leone em 'Senna'
Gabriel Leone em 'Senna' Imagem: Netflix

A resposta pode estar no jovem que sentou no volante de um kart antes de perder os dentes de leite e percebeu, logo cedo, que seu futuro estava numa pista de corrida. Senna não é retratado como figura mítica e inatingível, e sim como alguém propenso a falhas, mas disposto a superar seus próprios limites.

O automobilismo é, sim, um esporte de elite, acessível para poucos. A percepção ao vê-lo entrar num cockpit, contudo, é que ele trazia consigo um sonho que unia todo o Brasil.

Essa conexão ganha credibilidade com a escolha de Gabriel Leone para viver Ayrton Senna. Aos 31 anos, o ator de "Eduardo e Mônica" e "Ferrari" traz o equilíbrio de simpatia e senso de perigo que faziam o piloto parecer tão acessível.

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Ele é intenso e introspectivo na mesma medida, emprestando verdade não só ao Senna dos holofotes, que uma geração inteira acompanhou pela TV, mas também ao piloto em sua vida pessoal, sempre reservada, que ganha aqui uma janela insuspeita.

Para efeitos de narrativa, "Senna" criou a figura de uma repórter esportiva, Laura Harris, que se torna uma espécie de biógrafa não oficial do piloto desde que ele trocou São Paulo pela Inglaterra, no começo dos anos 1980, para competir na Fórmula Ford e disparar sua carreira internacional.

Interpretada pela inglesa Kaya Scodelario, que não raro interage com Leone em português quase sem sotaque (sua mãe é brasileira), a personagem é um avatar expositivo —e crítico— que condensa de forma inteligente os saltos da carreira de Senna.

Kaya Scodelario entrevista Gabriel Leone em 'Senna'
Kaya Scodelario entrevista Gabriel Leone em 'Senna' Imagem: Netflix

Biografias esportivas seguem, de forma generalizada, uma "fórmula" em comum. Existe o protagonista superando barreiras, internas e externas, para chegar à vitória. A figura de um antagonista sempre ajuda o fluxo narrativo. E o esporte —seja futebol, atletismo ou xadrez!— tem de ser retratado de forma empolgante. É a jornada do herói, com medalhas e um pódio no final.

"Senna" marca todas as caixinhas com louvor. A evolução do piloto é entrecortada pelo caos de sua vida pessoal —ou falta de—, representada em especial por seu relacionamento com a apresentadora Xuxa Meneghel (em caracterização perfeita de Pâmela Tomé). Existe acerto dramático ao acentuar sua rivalidade com o piloto francês Alain Prost (Matt Mella). Sua vida em família é retratada como refúgio à rotina inquieta dos campeonatos.

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É justamente nas pistas que "Senna" atinge uma excelência pouco (ou nunca!) vista em produções nacionais. Se a recriação de época em diferentes países é meticulosa, é na reprodução das corridas que Vicente Amorim dá um salto além.

A produção amarrou um balé intrincado de carros em pistas reais com cockpits montados em estúdio, cercados por cenários digitais. A costura é impecável, com a direção de Amorim levando ao público a tensão, o suspense, o perigo e o júbilo de estar em um carro disparado a mais de 300 km/h. É impressionante.

'Senna' reproduz de forma vibrante a sensação de estar no cockpit de um Fórmula 1
'Senna' reproduz de forma vibrante a sensação de estar no cockpit de um Fórmula 1 Imagem: Netflix

As corridas, que não deixam nada a dever a filmes emoldurados pelo automobilismo como "Rush" e o recente "Ferrari", coroam de forma vibrante uma trama tão cara à nossa história.

É o entrelace de todos os elementos que faz de "Senna" uma série na mesma medida empolgante e comovente. A nostalgia de quem viveu aquela época pega pesado quando as lembranças batem. Mas ser entusiasta do esporte, felizmente, é bônus para sua apreciação.

Ao colocar o país no topo do pódio, Ayrton Senna trouxe a ideia de um Brasil possível —especialmente ao fim de uma ditadura militar, ajudando a recuperar o prazer de ver a bandeira verde e amarela erguida.

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Foi uma responsabilidade que ele tomou com entusiasmo. Não é raro se referirem a Senna como herói. Certamente ele foi um ídolo, um dos maiores de nossa história. Mas o que "Senna" revela, de forma emocionante e irretocável, é sua humanidade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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