'Kraven, o Caçador': eis que, no fundo do poço, havia um alçapão...
Trinta minutos já haviam passado do começo da sessão de "Kraven, o Caçador", quando o casal sentado à minha frente foi conferir as mensagens no celular, jogar "Roblox", passar o olho nas redes sociais. Sentença de morte no escurinho do cinema, dessa vez achei por bem nem protestar. Qualquer coisa —qualquer coisa mesmo— seria mais interessante que acompanhar o filme.
A mente do executivo hollywoodiano médio é mesmo um abismo infindável, uma verdadeira esfinge. Não há outra explicação para a continuidade desse paradoxo do cinema moderno chamado "Universo do Homem-Aranha Sem o Homem-Aranha". "Kraven, o Caçador" é o sexto exemplar de uma prole que inclui três "Venom", "Morbius" e "Madame Teia". Se você odeia profundamente seu amigo secreto, aconselho importar um six-pack em DVD no futuro.
A bem da verdade, tudo aqui obedece à lei do dinheiro. Poucas propriedades intelectuais são tão lucrativas e reconhecíveis como o Homem-Aranha. Atualmente em sua terceira encarnação, os filmes do herói são produzidos pela Marvel dentro de seu universo cinematográfico. Todo o gigantesco entorno do herói, contudo, continua à disposição da Sony. A conexão, por mais tênue, é tentadora demais para não ser abusada.
Os três "Venom" ancorados por Tom Hardy, por exemplo, assumiram sua vocação para a galhofa e se tornaram um playground divertido para o ator. Fora o flerte em cenas pós-crédito com o canvas em larga escala da Marvel, ele permaneceu em seu canto. Menos sorte tiveram Jared Leto, à frente do indescritível "Morbius", e Dakota Johnson, engabelada a participar do insípido "Madame Teia".
Com direção de J.C. Chandor, e Aaron Taylor-Johnson no papel-título, "Kraven" é ligeiramente melhor que o resto da turma. O que tem o mesmo peso de escolher o mais recente entre os alimentos há muito vencidos na geladeira.
Diretor de talento inegável —como atestam os ótimos "Margin Call", "Até o Fim" e "O Ano Mais Violento"—, Chandor tem noção de ritmo e sabe compor um quadro. Mas há limites quando o roteiro em mãos é tão confuso, preguiçoso e mal-amanhado.
A primeira cena traz Kraven encarcerado em uma prisão russa, o que logo se revela um plano para eliminar um criminoso poderoso que comanda seu império por trás das grades. Daí a trama retrocede 16 anos, mostrando o jovem, ainda chamado Sergei, que recebe com seu irmão Dmitri a notícia da morte de sua mãe.
Para lidar com o luto e "ser forte", o pai da dupla, o gângster Nikolai Kravinoff (Russell Crowe, pai preferido em filmes de hominhos), os leva a um safari para caçar um leão mítico.
Para encurtar um fiapo de trama que se estende indefinidamente, o jovem Sergei é emboscado pelo tal leão e "morre" —mas não antes de ter seu sangue misturado com o do animal.
Ele ressuscita por causa da ação de uma jovem, Calypso, que "pressente" toda a ação e despeja um líquido mágico entregue por sua avó goela abaixo do garoto. Crowe, com mais frases feitas que um coach picareta, tenta trazer o filho para seu lado sombrio, forçando Sergei a se mandar. Nem tente entender, só vem comigo.
Adulto, com superpoderes e tanquinho bem definido, Sergei —rebatizado Kraven— vive longe da civilização, visita o irmão (Fred Hechinger) uma vez por ano e se dedica a caçar criminosos internacionais com a ajuda de Calypse (Ariana DeBose).
Suas ações assustam outro gângster, Aleksei Sytsevish (Alessandro Nivola), capaz de se transformar no indestrutível e monstruoso Rino (seu poder vem de um "médico de Nova York"), que mira o império do Kravinoff pai. Uma emboscada aqui, outra cena de ação ali (uma delas copia sem cerimônia "Capitâo América: Guerra Civil"), sobem os créditos.
Newsletter
O QUE FAZER EM SP
Qual a boa do fim de semana? Receba dicas de atrações, passeios, shows, filmes e eventos para você se planejar. Toda sexta.
Quero receberTirando uma menção ligeira do jornal Clarim Diário, a conexão de "Kraven" com os outros filmes do universo do Homem-Aranha —ou mesmo com o próprio— é zero. Não há easter eggs, não existem cenas pós-créditos, nada que alimente teorias e especulações por parte de fãs mais afoitos.
A impressão é que os roteiristas pescaram referências superficiais dos gibis da Marvel e as salpicaram no texto —um Miles Warren aqui, um Estrangeiro ali, um Camaleão amarrando a coisa toda. E só.
Só consigo imaginar o desespero de Kevin Feige em ver a marca Marvel ser abusada de forma tão inclemente. Não que os filmes do estúdio estejam em sua melhor fase, mas ainda há mais cuidado e coerência em um frame de "As Marvels" do que num rolo de celuloide inteiro de "Kraven".
A essa altura, claro, não faz muita diferença, já que a Sony aparentemente cravou aqui o último prego no caixão de seu puxadinho aracnídeo, dedicando-se daqui em diante tão e somente a seu maior astro.
Tal qual os filmes capitaneados por Zack Snyder na DC, o sexteto sinistro de produções com vilões do Aranha primaram pela mediocridade e não vão deixar saudade —só lamento que jamais teremos a chance de assistir a uma adaptação de "Tia May e Senhorita Leoa".
Fica a lição: nem todos os brinquedos na caixa valem a pena ser levados ao playground. Mas algo me diz que essa turma não aprende.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.