Fanfic de 'Caverna do Dragão': cultura pop é sempre melhor com riscos
A série animada "Caverna do Dragão", exibida na TV americana entre 1983 e 1985, nunca foi concluída. Seu último episódio foi roteirizado, mas não foi produzido —quando o script ficou pronto, a série já havia sido cancelada. Fim da história, outros produtos derivados do RPG "Dungeons e Dragons" carregaram o legado da marca, vida que segue.
Aqui no Brasil, contudo, os fãs de "Caverna do Dragão" nunca se conformaram. O sucesso do desenho no país —com seus 27 episódios em constante rotação em programas infantis— deixou uma geração de órfãos eternamente emburrados com o rombo perene em sua memória afetiva. Não é surpresa, portanto, que cada vez que a caixa de brinquedos de "Caverna do Dragão" é remexida, seus entusiastas entram em surto.
É o caso de "O Episódio Perdido", animação em stop motion produzida pela Hasbro com o Jovem Nerd e a Nonsense Creations. Na falta de um encerramento oficial, a turma arregaçou as mangas para fazer seu próprio "final de temporada". É uma fanfic, claro, uma ficção produzida por fãs sem a participação de seus criadores, em uma ação bolada para, entre outras coisas, vender bonecos.
Repetição é regra
As reações, como absolutamente tudo que orbita o universo da cultura pop, foi dividida. Muitos fãs aplaudiram a iniciativa; já outros descartaram o curta como "falta de respeito" aos criadores da série. É muito barulho por nada. "Caverna do Dragão", nunca foi exatamente sucesso de público, atrai o mesmo recorte específico de admiradores há praticamente quatro décadas: a turma que se agarra com fúria a um naco de sua própria infância.
A nostalgia é, notadamente, um dos motores mais poderosos da cultura pop. No cinema ou na TV, nos quadrinhos e em games, o mundo moderno vive um loop infinito de histórias que trazem conforto ao disparar um gatilho para "tempos melhores".
Fãs de algumas propriedades intelectuais não se importam em ver a mesma história regurgitada ad infinitum —na verdade, é exatamente assim que preferem.
No caso de fanfics como "O Episódio Perdido", a proposta em buscar um desfecho para uma animação teve o cuidado em não desviar de soluções familiares —a trama, escrita por Fábio Yabu e Deive Pazos, é inspirada em um compilado de teorias sobre o desenho discutidas há décadas na internet. Em obras assim, não há espaço para criatividade ou ousadia. O importante é mimetizar ao máximo o produto exatamente como a maioria se lembra dele.
Reinventar é viver
Não que "Caverna do Dragão" fosse inovadora. Tirando a violência por vezes excessiva, que ouriçava associações de pais nos EUA, o desenho trazia narrativa repetitiva e enfadonha.
Apesar de gente de peso por vezes envolvida nos roteiros, como Mark Evanier, Paul Dini e Steve Gerber, a fórmula era batida e previsível. Como boa parte das animações da época, o propósito era vender brinquedos —algumas coisas, nota-se, jamais mudam.
Isso não impediu, vale ressaltar, que algumas séries contemporâneas se tornassem fenômenos que desafiam a roda do tempo, como "Masters of the Universe", "Transformers" e "As Tartarugas Ninja". São conceitos que, apesar de altos e baixos, mantêm-se relevantes. O motivo é óbvio: seus proprietários não são refratários à reinvenção.
O cineasta Kevin Smith, por exemplo, deu continuidade à saga do herói He-Man como série da Netflix, que já conta com duas temporadas. "Salvando Etérnia" e "A Revolução" expandiram o universo de "Masters of the Universe", levando seus protagonistas a caminhos inusitados e surpreendentes.
Foi a primeira vez que He-Man fugiu de sua fórmula e ganhou algum relevo. Ainda assim, um recorte de seu público-alvo fez cara feia: fãs mais velhos que não admitem mudanças. Nenhuma.
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É uma tremenda bobagem. A reinvenção é um dos traços mais fascinantes da cultura pop. Seria dolorosamente enfadonho se o Batman ou o Homem-Aranha não evoluíssem como personagens ou não refletissem a passagem do tempo —especialmente para criações que já contam décadas desde sua concepção. Abrir espaço para riscos pode, claro, alienar os fãs mais radicais, mas a história tem ressaltado cada vez mais a irrelevância dessa turma.
Claro que "Caverna do Dragão" dificilmente ganharia alguma chance por meios "oficiais", tendo em vista que a demanda por este grupo de personagens fora do Brasil é zero.
O máximo que eles conseguiram foi uma ponta no filme "Dungeons e Dragons: Honra Entre Rebeldes" —este, sim, uma aventura com protagonistas interessantes e complexos. Já por aqui, até comercial de automóvel, recebido por fãs como a terceira revelação, a turma do desenho protagonizou.
Sem filmes ou novas séries animadas no horizonte, os admiradores de "Caverna do Dragão" devem se contentar com os 15 minutos de "O Episódio Perdido".
Para projetos futuros, sugiro o retorno de "Jaspion" (que já rolou em uma HQ com roteiro de Fábio Yabu), um especial em 3D de "Chaves" ou uma nova temporada, mesmo em animação, de "Smallville". Os fãs (sempre eles) nunca se conformaram em nunca ver Tom Welling em toda sua glória como Superman.
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