'Mufasa' repete alguns acertos --e todos os erros-- de 'O Rei Leão'
"Mufasa" chega aos cinemas com uma vantagem clara sobre "O Rei Leão". Ao contrário da produção dirigida por Jon Favreau em 2018, este prólogo que retorna à savana africana não compete com a animação de 1994. Mesmo assim, o filme comandado por Barry Jenkins não consegue largar o osso: é Simba, agora rei de todos animais, quem surge logo na primeira cena.
Trazer um dos personagens mais carismáticos da Disney —mesmo em sua versão digital— é uma jogada calculada. Minimizar riscos é regra no cinema corporativo, e dar ao público uma dose de familiaridade e conforto é a maneira mais segura de capturar sua atenção para a jornada à frente. Não correr perigo é, para o bem e para o mal, parte da prerrogativa de "Mufasa".
A cena com Simba é necessária para armar a trama. Ausente com sua parceira, Nala, que está prestes a dar à luz seu segundo herdeiro, Simba deixa a princesa Kiara aos cuidados da dupla Timão e Pumba. Assustada em estar longe dos pais pela primeira vez, a jovem leoa logo se entretém com a chegada do mandril Rafiki, que passa a lhe contar a história do patriarca de sua família, Mufasa, e como ele se tornou rei.
A trama que se desenlaça após essa introdução busca o mesmo equilíbrio de tragédia clássica e comédia musical que fez a animação de 1994 elevar a régua do gênero e se tornar um divisor de águas moderno. É aqui que sua vantagem passa a se tornar um problema. Se "O Rei Leão" adaptava o "Hamlet" de Shakespeare sob a ótica do trabalho do japonês Osamu Tezuka, "Mufasa" se ancora na fórmula mais rasteira do cinema pop moderno.
Este é o problema em trabalhar com produtos consagrados: o pouco espaço para um cineasta se movimentar na caixa de brinquedos alheia. "Mufasa" traz temas que são obviamente caros ao diretor Barry Jenkins (de "Moonlight"), como a busca pela identidade e a tomada das rédeas do próprio destino. Mas ele precisa diluir essa história sufocado pelo peso de uma propriedade intelectual que poda quaisquer impulsos criativos. Não há magia que resista ao horror da palavra "franquia".
Ainda assim, Jenkins dá seu melhor. A trama de "Mufasa" é desencadeada pela tragédia que separa o personagem-título, ainda filhote, de seus pais. Assustado e sem saber o caminho para casa, ele é resgatado por Taka, príncipe do reino da planície. Seu pai, Obasi, tem animosidade com o desgarrado recém-chegado, mas sua mãe, Eshe, o acolhe. E Taka, entusiasmado, vê em Mufasa o irmão que ele sempre quis. Um elo poderoso é, então, firmado.
A paz aparente é abalada com o ataque de uma alcateia de leões albinos. A fúria dos forasteiros, amplificada pelo desejo de vingança de seu líder, Kiros, que perdeu seu filho, separa Mufasa e Taka de seu grupo. Resta aos irmãos seguir em frente em busca da mítica Melele, refúgio paradisíaco escondido para além do horizonte. A jornada logo ganha a adição da leoa Sarabi, que também perdeu sua alcateia para as forças de Kiros, seu "protetor" Zazu e de um jovem Rafiki.
A estrutura narrativa de "Mufasa" aposta na repetição de convenções para minimizar riscos. Quando o grupo é formado, toda a ação caminha para moldar os personagens em suas versões de "O Rei Leão". Jenkis então assume a tarefa de transformar um elo inabalável entre irmãos na animosidade letal que um dia fará Mufasa perecer nas mãos de Scar —desde o primeiro momento, o destino de Taka não é nenhuma surpresa.
A frustração é perceber a forma preguiçosa de como o roteiro é desenvolvido. As motivações de Taka para virar a casaca, por exemplo, são tênues e pouco convincentes —basta dizer que o filme apela para o clichê supremo do triângulo amoroso em que uma das partes transforma mágoa em raiva. Honestamente, seria mais interessante, e talvez até um tanto óbvio, direcionar a afeição de Taka para Mufasa, e não para Sarabi. Mas a Disney jamais abraçaria esse vespeiro.
A perfumaria desse texto dolorosamente arrastado também não ajuda. A trilha sonora é um desastre, Lin-Manuel Miranda não consegue criar uma única melodia memorável, então nos agarramos a farelos de Tim Rice e Elton John jogados ao longo do caminho. Visualmente, "Mufasa" não é menos que espetacular, mas a animação fotorrealista, com seus animais inexpressivos e por vezes indistinguíveis, é simplesmente incapaz de criar qualquer conexão emocional.
O que resta de combustível no motor de "Mufasa" é o carisma de seus personagens. É por meio deles que Barry Jenkins busca injetar alguma personalidade, especialmente no arco do próprio Mufasa, que tem uma jornada dramática clara e experimenta uma revelação de inegável impacto. Mesmo na narrativa batida do azarão que se torna rei, Jenkins acha espaço para questionamentos pertinentes sobre o preço da responsabilidade e as consequências de uma traição.
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Quero receberO sucesso de um produto como "Mufasa", contudo, vem mesmo da memória afetiva trazida pela marca "O Rei Leão". Se o filme consegue puxar pela emoção é justamente em sua moldura de símbolos confortáveis, que convida a relevar o recheio e celebrar uma abertura e encerramento vencedores. Não atrapalha também o fator fofura, já que é impossível não simpatizar com a bicharada, mesmo que seja digital.
Essa perfeição plástica tem seu revés. Uma sessão de "Mufasa" é como observar a majestade de criaturas magníficas em um safári cinematográfico. É lindo, claro, mas esse artificialismo lhe rouba o senso de deslumbramento. Na falta de uma catarse, resta um produto eficiente e descartável. Se comparado a "O Rei Leão" (o de 2018, por favor), "Mufasa" certamente é uma evolução —o que não quer dizer muita coisa. Mas a criançada, embalada pelas férias, vai adorar.
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