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Thiago Stivaletti

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'A Viagem de Pedro': Cauã Reymond dá uma inédita fragilidade a Dom Pedro I

Sergio Laurentino e Cauã Reymond em cena de "A Viagem de Pedro" - Fábio Braga/Divulgação
Sergio Laurentino e Cauã Reymond em cena de 'A Viagem de Pedro' Imagem: Fábio Braga/Divulgação

Colunista do UOL

01/09/2022 04h00

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1822. Dom Pedro I declara a Independência do Brasil de Portugal, agradando diversos setores da elite brasileira que se queixavam do alto pagamento de impostos à Coroa Portuguesa. Corta para 1831. Nove anos depois, Dom Pedro pega um navio e volta a Portugal.


Seu objetivo é reaver para sua filha o trono português que seu irmão Miguel usurpou. Mas ele não é querido nem no Brasil nem em Portugal, onde é considerado um traidor do reino português.

Esse desencanto com um projeto de Brasil que deu muito errado ronda o tempo todo "A Viagem de Pedro", filme de Laís Bodanzky que estreia nesta quinta nos cinemas.

Em vez de um Dom Pedro heroico, carismático, pleno de força política, a única qualidade que guarda o personagem de Cauã Reymond é sua beleza inata. Todo o resto é frustração, insegurança, ressentimento. E no lugar de um Dom Pedro montado a cavalo, vencendo batalhas, um homem acuado dentro de uma fragata que parece nunca chegar a seu destino.

Como se vê, "A Viagem de Pedro" não é exatamente o tipo de filme que o governo atual gostaria de ver estreando na semana em que se "comemora" os 200 anos da Independência.

O presidente não pode nem reclamar, já que largou o cinema brasileiro e toda a cultura nacional a um desmonte completo. Para ele, comemorar a Independência é soltar tiros de canhão de hora em hora na praia de Copacabana. Na verdade, a data é que caiu no colo do filme: o seu lançamento estava previsto para 2020, mas atrasou por conta da pandemia.

"O filme não foi feito para essa data, e ainda bem. Talvez a história que está ali contribua muito mais para esse bicentenário do que se ele desse conta dos fatos históricos", explica a diretora.

"Dom Pedro ficou grudado no imaginário brasileiro de duas formas: como o herói ufanista do quadro do Pedro Américo, em uma cena [do grito do Ipiranga] que nunca existiu; ou um fanfarrão, mulherengo, garanhão, tolo, burro, sem estudos. Nenhuma das duas visões corresponde ao que ele foi. É um personagem complexo, do qual eu e Cauã fomos descobrindo as camadas". Você pode também ouvir a entrevista com a diretora no podcast "Plano Geral" (a partir de 33:50 no arquivo abaixo).

Num filme que estreia em 2022, não será difícil atribuir a Dom Pedro a imagem de homem tóxico, que tratou muito mal todas as mulheres de sua vida: a primeira esposa, Leopoldina, pressionando-a a engravidar sete vezes seguidas; a segunda, Amélia, mais presente no filme por ter participado da tal viagem, com quem teve uma filha; e a amante Domitila, que aparece em pesados flashbacks, mãe de mais quatro filhos dele.

E qual o motivo de tamanho desdém das elites brasileiras por esse dom Pedro que abandona de vez o país em 1831? "Na Independência, a primeira Carta Constituinte que Dom Pedro escreve com José Bonifácio era muito avançada em ideias. Tinha um projeto de país desenhado por eles e também por Leopoldina. Mas, além da eliminação da taxa da Coroa, não havia interesse por parte da elite política e econômica brasileira em mudar mais nada. Não havia interesse, por exemplo, em abdicar da mão de obra escravizada", explica Laís.

Por isso, que ninguém espere um filme de aventura, ou um épico de nenhum tipo. "A Viagem de Pedro" acerta mais ao fazer do navio uma babel de línguas e castas sociais que conviviam duramente no Brasil da época. A corte e seus comandados falam português, alemão, inglês; no porão, negros escravizados falam suas línguas de origem. Como costuma ocorrer no cinema, duas horas não são suficientes para dar todo o contexto do legado de Pedro - para isso, é melhor recorrer aos diversos lançamentos de livros programados para a data. Mas consegue atingir uma meta importante: questionar o mito, desconstruir a imagem de herói da Independência. Em suma, derrubar a estátua, como sugerem o início e o final.

Em tempo: ao contrário do que pode dar a entender a narração final do filme, Dom Pedro não morre em batalha, mas de tuberculose em 1834, três anos após seu retorno a Portugal. Não sem antes alcançar seu maior objetivo ao retornar: destronar Miguel e deixar o trono português com sua filha mais velha, Maria II. Foi até o fim da vida um monarquista ferrenho, sem nenhum pendor republicano. Seu legado brasileiro, porém, não foi motivo de orgulho pessoal, como o filme ajuda a iluminar.