Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Paloma' é uma pequena revolução das vidas trans no cinema
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Apesar dos escombros do governo Bolsonaro, está sendo um ano proveitoso para o cinema brasileiro. Entre festivais e as estreias deste final de ano, muita coisa boa passou pelas telas: o acreano "Noites Alienígenas", o mineiro "Marte Um"; "Regra 34", que saiu com o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, na Suíça; "Transe", "Fogaréu", "Carvão" e muitos outros. Isso só para ficar nos longas de ficção - a safra fica ainda melhor com documentários como "Exu e o Universo" e "Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você".
Mas não à toa, um filme pernambucano saiu vencedor de dois festivais nesta reta final do ano. "Paloma", de Marcelo Gomes, venceu o Troféu Redentor de melhor filme no Festival do Rio e o Coelho de Ouro de melhor longa no Mix Brasil, dedicado a filmes LGBTQIA+. O filme está em cartaz nos cinemas.
O longa conta uma história banal: Paloma trabalha como agricultora no sertão de Pernambuco, tem uma filha pequena e sonha em se casar na igreja de véu e grinalda com seu namorado Zé. Mas há um detalhe: ela é trans. Não será spoiler dizer que o casamento enfrentará resistência dos amigos, da cidade, da sociedade. Paloma está disposta a fazer algumas concessões, mas não irá abrir mão do seu sonho. O diretor leu essa história numa notícia de jornal e entendeu que ali havia um filme.
Nas mãos de um cineasta americano, o conflito entre Paloma e o resto do mundo seria o cerne do filme, com cenas dramáticas de proporções gigantes. Mas Marcelo Gomes é pernambucano e já dirigiu joias como "Cinema, Aspirinas e Urubus" (2005). Vemos Paloma batendo papo com as amigas na lavoura enquanto colhe mamão.
Acompanhamos um dia em que ela procura alguma amiga para cuidar da filha para ir a outro compromisso. Vemos o carinho com que Zé a recebe em casa para jantar. É a vida de uma mulher como todas as outras, com seus pequenos problemas do cotidiano. Sem ser discursivo nem panfletário, é como se o filme nos dissesse a cada minuto: uma mulher não é diferente das outras por ser trans.
Ela busca o trabalho, o amor, a felicidade; cuida da sua família e corre atrás de seus sonhos e sua felicidade. É assim, buscando o "não conflito", que Marcelo Gomes aproxima o espectador de Paloma e o faz se apaixonar por ela.
Paloma é vivida por Kika Sena, arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer trans. Em entrevista ao nosso podcast Plano Geral, Kika falou que o desafio foi não cobrar de Paloma "militância ou empoderamento, como se este pudesse ser apenas um lugar de conflito. "O empoderamento de Paloma está em outro lugar, na determinação em aprender a escrever o nome para assinar um documento".
Por um lado, "Paloma" tem um conflito que o cinema LGBTQ explora bastante: a maneira como o olhar carregado de preconceito da sociedade pode corromper um amor a princípio puro e genuíno. É o mesmo tema por trás do belga "Close", de Lukas Dhont, premiado em Cannes, destaque do Mix Brasil, disponível em breve no streaming da Mubi. Mas enquanto o filme belga trata de um afeto puro entre dois meninos ainda na escola, o brasileiro aponta para uma abordagem bastante original (talvez revolucionária) para as mulheres trans no cinema, após anos retratadas apenas na prostituição e submetidas à chave da comédia mais grotesca.
A mudança de paradigma é grande se pensarmos que, há apenas oito anos, Jared Leto, um galã cis, ganhava um Oscar por viver uma mulher trans em "Clube de Compras Dallas". E há seis anos, Eddie Redmayne era indicado por outra personagem trans no filme "A Garota Dinamarquesa". Podem até ser boas atuações, mas vão contra uma demanda antiga da comunidade trans: um maior espaço para viver seus personagens no cinema e na TV. Afinal, chamar um homem (ou mulher) cis para viver uma mulher trans sempre foi prática comum em Hollywood, no cinema e na TV brasileiros. Mas o contrário - uma mulher trans num papel cis - sempre foi algo bem raro.
E se permitem uma última dica: nesta quinta estreia outro ótimo filme vindo do Nordeste: a comédia policial "Serial Kelly", de René Guerra, rodado em Alagoas e estrelado pela paraense Gaby Amarantos, hoje uma estrela do tecnobrega. Na história da mulher que mata os homens que não respeitam seu espaço e é perseguida pela polícia, há espaço para um belo tom feminista e uma presença rápida de mulheres trans como uma espécie de anjos da guarda no caminho da protagonista. Viva o cinema nordestino, que nos faz repensar os nossos modos de ser, viver, pensar e sentir.
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