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Na Paraíba, festival mostra a resistência do cinema brasileiro a Bolsonaro
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"Hoje descobri que eu ainda torço pelo Brasil." A frase do diretor pernambucano Daniel Bandeira se referia à vitória de 4x1 do Brasil sobre a Coreia na Copa na última segunda-feira, mas também falava da esperança de que o desmonte do cinema brasileiro no governo Bolsonaro se encerre no próximo dia 31. Esse clima de otimismo com o novo governo se misturou ao tom de resistência dos filmes nacionais apresentados no Fest Aruanda, o principal festival de cinema de João Pessoa, capital da Paraíba.
Bandeira é diretor de "Propriedade", filme de terror social primo de "Bacurau", um olhar de revolta que imagina o caldeirão social entre ricos e pobres entornando de vez depois de anos de extrema direita no Brasil. Traumatizada com um sequestro que terminal mal, Teresa, uma mulher rica do Recife (Malu Galli), vai passar uns tempos tranquilos com seu marido na fazenda da família. Mas os trabalhadores rurais planejam dominar a propriedade quando sabem que ela vai ser vendida e eles, expropriados. Teresa passa a maior parte do filme trancada em seu carro blindado, se defendendo do ataque iminente. Um filme cheio de som e fúria, que dá forma e conteúdo a um conflito de classes que no Brasil costuma eclodir de forma mais enviesada.
Esse país que se odeia (ou uma elite que odeia seu povo) reapareceu em outros filmes da seleção. O curta documental "Tekoha", de Carlos Adriano, relembra um episódio de 2021, quando seguranças privados de fazendeiros queimaram a casa de uma família Guarani Kaoiwá e atiraram contra ela no Mato Grosso do Sul - apenas uma de um conjunto de ações para os quais o atual governo sempre fez vista grossa. No curta "Socorro", Susanna Lira conta a história da líder comunitária Socorro do Burajuba, que sofre no corpo os efeitos da poluição dos rios do município de Barcarena, no Pará.
Essa pulsão de morte latente no Brasil desde o início da pandemia em 2020 aparece também como sintoma em histórias individuais. No curta "Tiro de Misericórdia", um rapaz (Johnny Massaro) ensaia sua própria morte com a amante (Isabel Zuaa). Em "Filme de Quarto", uma mulher deprimida num apartamento no centro de São Paulo (Denise Fraga) compartilha seus últimos dias com um projetor de sua própria imagem e um galão de água.
A música salva
Mais uma vez, é a música brasileira que vem compensar o pessimismo de uma parte da seleção. Impressionante como, 27 anos depois da retomada do cinema brasileiro e tantos documentários musicais já feitos, o Brasil ainda fornece artistas cuja obra merece ser iluminada em filmes. No Fest Aruanda, cinco documentários relembram artistas da música de maior ou menor alcance: Beth Carvalho, Fausto Fawcett, Lupicínio Rodrigues, Belchior e os expoentes do mangue beat pernambucano.
Em "Andança - Os Encontros e a Memória de Beth Carvalho", o diretor Pedro Bronz se debruça sobre mais de 800 fitas VHS deixadas pela Madrinha do Samba em seu arquivo pessoal, com conversas, gravações, reuniões em casa ao longo de 53 anos de música. O filme faz jus à grandeza de Beth, que lançou nomes hoje fundamentais da história do samba e do pagode, como Zeca Pagodinho, Almir Guineto e Arlindo Cruz. Uma entrevista de Beth à TV é reveladora de seu pensamento progressista. O repórter pergunta a ela o que ainda falta na música brasileira, e ela responde: "Mais brasilidade". O repórter pede para ela explicar melhor e ela dispara: "Negritude".
"Fausto Fawcett na Cabeça", de Victor Lopes, faz um retrato do poeta maldito de Copacabana que estourou em 1987 com o hit "Katia Flávia" - e depois com "Rio 40 Graus", gravada por Fernanda Abreu. Mais conhecido como músico, Fausto também é escritor, com livros publicados como "Favelost". O filme tem o mérito de dar vazão total ao pensamento de Fausto, que fez sucesso nos anos 80 e 90 ao lançar mulheres fatais como Marinara e Regininha Poltergeist no show "Básico Instinto" e outros espetáculos altamente eróticos. É um artista sem vez no mainstream de hoje porque seu pensamento cheio de libido e testosterona não se enquadra no politicamente correto - suas musas hoje seriam atacadas por objetificação sexual. Mas ele resiste. "Esse novo pensamento me preocupa zero. Do ponto de vista social ele tem que ser aplaudido, mas do ponto de vista estético é uma lástima. O universo da arte é amoral, e hoje tudo tem que ser edificante", critica. "Sou um homem dos anos 70, quando todo o movimento artístico era estar fora da sociedade. Hoje é todo mundo gritando: 'pelo amor de Deus, me inclui!", disse na entrevista coletiva do festival.
Teatro na tela
Ainda do lado do otimismo, o Fest Aruanda ainda apresentou "Pérola", comédia dirigida por Murilo Benício a partir da peça de enorme sucesso lançada por Mauro Rasi em 1995. Estrelado por Vera Holtz, o espetáculo ficou anos em cartaz com a história da mãe do próprio Rasi, uma dona de casa de Bauru cujos pequenos sonhos eram construir sua piscina e ampliar o espaço da casa. Tudo é contado do ponto de vista do filho, Maurinho, um jovem que deixa a casa da família para vencer como dramaturgo no Rio, morando com um namorado que os pais teimam em não enxergar.
No lugar de Vera, é Drica Moraes quem vive Pérola no cinema, se esforçando para manter o sotaque do interior de São Paulo. Benício, que já tinha feito antes uma bela adaptação de "O Beijo no Asfalto" de Nelson Rodrigues, vai se firmando como um diretor que transpõe peças importantes do nosso teatro para o cinema. "O Murilo viu a peça muitas vezes e sentia que tinha uma dívida com o Mauro, que o tinha chamado para fazer a peça mas ele não pôde aceitar. Ele acha que os nossos dramaturgos têm muito menos adaptações para o cinema do que mereceriam", contou o produtor do filme, Marcello Maia.
Em resumo, o que não faltou no Fest Aruanda foi uma safra forte de longas e curtas que comprovaram a resistência do cinema brasileiro em quatro anos de desmonte das políticas culturais. Mas, se a produção segue firme, a distribuição e a exibição sofrem com as salas vazias e um circuito que, desde a volta da pandemia, privilegia cada vez mais os blockbusters americanos. Está mais na hora de pensar novas estratégias para difundir essas obras para além dos festivais de cinema anuais, chegando mais fortes ao streaming, e descobrir como despertar mais o interesse de um espectador cada vez mais atolado com dezenas de lançamentos toda semana.
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