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Thiago Stivaletti

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mostra de Tiradentes celebra o renascimento do cinema na era Lula

O diretor João Dumans e a atriz Viviane de Cássia recebem o prêmio de melhor longa em Tiradentes pelo documentário "As Linhas da Minha Mão" - Leo Lara/Universo Produção
O diretor João Dumans e a atriz Viviane de Cássia recebem o prêmio de melhor longa em Tiradentes pelo documentário "As Linhas da Minha Mão" Imagem: Leo Lara/Universo Produção

Colunista do UOL

30/01/2023 13h33

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A Mostra de Tiradentes (MG), festival de cinema brasileiro independente que abre o calendário do ano e terminou no último dia 28, teve este ano uma edição marcada pela euforia. Não eram poucos os motivos a se comemorar: a eleição de Lula, a recriação do Ministério da Cultura, a certeza de que o setor audiovisual pode ao menos voltar a ser respeitado e ouvido.

Ao longo de nove dias, os curtas e longas-metragens fizeram, sem querer, um painel amplo das novas identidades, das minorias, das causas militantes e de diversas questões desprezadas pelo bolsonarismo, dando conta de um Brasil que não parou de produzir e se pensar contra a corrente autoritária. Abaixo, alguns dos destaques da Mostra, que se encerrou no último sábado:

A ministra Carmem Lúcia, do STF, e Joelma Gonzaga, nova Secretária do Audiovisual, na abertura do Fórum da Mostra de Tiradentes - Leo Fontes/Universo Produção - Leo Fontes/Universo Produção
A ministra Carmem Lúcia, do STF, e Joelma Gonzaga, nova Secretária do Audiovisual, na abertura do Fórum da Mostra de Tiradentes
Imagem: Leo Fontes/Universo Produção

- UMA NOVA RETOMADA DO CINEMA BRASILEIRO: se em outros anos divas globais como Leandra Leal ou Camila Pitanga concentraram as atenções nos primeiros dias, este ano a estrela pop foi a Ministra Carmem Lúcia, do STF, que abriu o Fórum do setor audiovisual. Ela desembarcou em Tiradentes menos de duas semanas depois dos ataques terroristas em Brasília, que destruíram principalmente a sede do Supremo. Carmem deixou de lado a neutralidade política do Supremo para atacar indiretamente o governo Bolsonaro, em frases como "Negar a arte é antidemocrático e antirrepublicano" e "O Estado tem a obrigação de promover bens culturais".

Para animar um setor devastado por Bolsonaro, a Carta de Tiradentes apresentada na Mostra reuniu os desafios que esperam o setor audiovisual neste momento de reconstrução. O maior deles é a regulação do mercado de VOD, num momento em que plataformas de streaming dominam o mercado sem grandes regras. "Não faz mais sentido uma cobrança de Condecine por obra nessas plataformas, e sim em relação ao faturamento delas", diz Pedro Butcher, coordenador do Grupo de Trabalho do setor de exibição e difusão. Mas isso esbarra na caixa-preta da falta de informações sobre audiência e faturamento de plataformas como Netflix e Amazon - um desafio que já está bem enfrentado, por exemplo, em países da União Europeia. Segundo ele, há uma proposta de criação de um streaming exclusivo para o cinema brasileiro, que pode ser atrelado a benefícios sociais como o Cartão Cidadão. E há outros pepinos correndo em paralelo, como a crise das salas de cinema, que enfrentam queda de público.

Mugunzá - Divulgação - Divulgação
Arlete Dias e Fabrício Boliveira em cena de "Mugunzá", de Ary Rosa e Glenda Nicácio
Imagem: Divulgação

- A POTÊNCIA DA MULHER: As mulheres apareceram fortes na frente e atrás das câmeras, mostrando suas forças e fragilidades em retratos complexos. Em "Mugunzá", de Glenda Nicácio e Ary Rosa, uma dona de bar resiste sozinha contra tudo e todos no Recôncavo Baiano, criando sozinha o filho depois de ter vivido uma história de amor com a mulher do prefeito. Em "As Linhas da Minha Mão", de João Dumans, que venceu o Prêmio do Júri de melhor longa, a atriz Viviane de Cássia Ferreira mostra sem filtros a dor e a delícia de ser quem é, numa corda bamba entre sensibilidade e loucura. Se por um lado ela sofre as pressões machistas de uma tia, que a acusa de "se deixar usar pelos homens", por outro ela lembra um rápido encontro sexual em Roma como um dos melhores de sua vida.

No curta alagoano "Infantaria", de Laís Santos Araújo, uma menina pré-adolescente tenta entender o trabalho da mãe, que ajuda jovens a abortarem, ao mesmo tempo em que já nutre fantasias românticas com os garotos, num pequeno relance do que a espera quando for adulta. No longa "Solange", de Nathália Tereza e Tomás Osten, uma dentista que vive em Salvador volta a Curitiba para recuperar caixas de objetos que deixou na casa de amigos, revivendo amizades, afetos e muitas cobranças.

O escritor Luís Capucho em cena do documentário-ensaio "Peixe Abissal", de Rafael Saar - Divulgação - Divulgação
O escritor Luís Capucho em cena do documentário-ensaio "Peixe Abissal", de Rafael Saar
Imagem: Divulgação

- A SOLIDÃO LGBTQIA+ - Nos filmes de Tiradentes, as questões gays e trans não foram da luta por visibilidade e aceitação, mas uma grande viagem por seus universos internos, de sensibilidade particular, angústias e solidões. No longa "Peixe Abissal", o mais redondo da competição, Rafael Saar monta um retrato lúdico e fantasioso do universo de Luís Capucho, escritor e compositor marginal conhecido pelo livro "Cine Orly". Realidade, ficção e delírio se misturam para mostrar o seu universo, num filme que passa longe do documentário tradicional - a mãe de Luís, que já morreu, é encenada pela atriz mineira Teuda Bara.

No curta "Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo", de Renato Sircili, um funcionário de motel grava os áudios dos hóspedes para mostrá-los ao seu namorado - o que começa como algo cômico e pitoresco termina revelando uma relação com fissuras e amarguras. Em "Promessa de um Amor Selvagem", de Davi Mello, a solidão de um rapaz que entra de penetra numa festa sem conhecer ninguém faz uma inesperada transição para a fantasia, quando tudo se revela ser o sonho de uma moça em outra época. Em "Lalabis", a diretora trans Noá Bonoba faz um ensaio abstrato e exuberante de Kali, que descobre o reino do título depois que seus pais e seu irmão aparecem paralisados. Um filme futurista em muitos sentidos, que mostra o quanto o desafio trans não passa só por aceitação social, mas também por uma maior compreensão estética de suas sensibilidades.

Indígenas da etnia Korubo em cena do documentário "A Invenção do Outro", de Bruno Jorge - Divulgação - Divulgação
Indígenas da etnia Korubo em cena do documentário "A Invenção do Outro", de Bruno Jorge
Imagem: Divulgação

- O MASSACRE DOS INDÍGENAS - Na semana em que o país se chocou com imagens de crianças ianomâmis doentes e desnutridas, Tiradentes estava atenta à questão com dois longas que nos ajudam a entender os indígenas para além dos clichês. Enquanto juristas entendem que o termo "genocídio" pode (e deve) ser usado nos processos contra Bolsonaro, o cinema ajuda a ver essa política de extermínio para além dos telejornais. "A Invenção do Outro", de Bruno Jorge, mostra o trabalho dos bons agentes da Funai em 2019, quando fizeram contato com a etnia isolada dos Korubos. Um dos protagonistas é Bruno Pereira, indigenista morto numa emboscada com o britânico Dom Philips sob o descaso do governo Bolsonaro. Em "Amazônia, a nova Minamata", Jorge Bondanzky filma o impacto do garimpo sobre o povo Munduruku, hoje doentes pela contaminação dos rios pelo mercúrio.