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Em filme, Beth Carvalho prova que não existe democracia sem samba
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- Documentário sobre a grande sambista Beth Carvalho, que morreu em 2019, estreia nesta quinta nos cinemas
- Filme revela a forte consciência política e social da Madrinha do Samba, que impulsionou nomes como Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho
Com o Carnaval batendo à nossa porta, é tempo de relembrar Beth Carvalho, uma das maiores sambistas que o Brasil já inventou. Mas que não se espere o óbvio. O documentário "Andança - Os Encontros e as Memórias de Beth Carvalho", que estreia nesta quinta nos cinemas, não tem aquela tradicional fila de depoimentos de sambistas e estudiosos do gênero comentando a importância da Rainha do Samba. Beth não era só garimpeira de músicas - também era de imagens, e colecionou imagens e conversas em fitas VHS, cassete, Super-8 e outros formatos a vida toda.
Ou seja: o que vemos e ouvimos aqui são as memórias da própria Beth, uma espécie de baú que ela deixou de testamento para o diretor Pedro Bronz explorar. Os depoimentos podem ser material para um segundo filme, que Bronz faria bem em dirigir depois para completar o quadro.
Em primeiro lugar, "Andança" situa Beth na longa história do samba carioca: dos seus padrinhos e influências (Clementina de Jesus, Nelson Cavaquinho, Cartola, Elizeth Cardoso) a seus apadrinhados: Zeca Pagodinho, o mais famoso, mas também Arlindo Cruz, Fundo de Quintal, Luiz Carlos da Vila e tantos outros.
Depois, o que começa a se revelar em suas memórias é uma consciência muito profunda de que a arte precisa ser popular e democrática. Algo que o Brasil sabe há mais de 500 anos, mas finge que não vê: a arte dos negros e dos mais pobres é mais rica que a da elite branca. Ainda muito jovem, sua idolatria por João Gilberto encontra um limite: ela andava pelos círculos da bossa nova, mas logo entendeu que o gênero é "muito elitista". E daí pra frente abraçou o samba com paixão até o fim.
Os fãs de samba vão se deleitar com curiosidades imensas, como um papo raro de Beth com Cartola. Ele já tinha concordado em lhe dar "As Rosas Não Falam", mas ela, faminta, tenta convencê-lo a lhe dar também "O Mundo é um Moinho". "Essa aqui é muito mais lenta. Você vai se queimar e queimar a canção", diz, com sinceridade. (Claro que ela arrumou um jeito de gravar a música depois). Ou ainda, Beth com Elizeth Cardoso gravando em estúdio nos anos 70 "Sorriso de Criança", clássico de Dona Ivone Lara, numa das raras imagens de Elizeth.
Enquanto o samba rola solto, a consciência política de Beth vai dando as caras. Em pleno Cacique de Ramos, a repórter lhe pergunta se o pagode do Cacique vai dar certo com o pessoal da Zona Sul carioca. "Minha querida, não existe Zona Norte e Zona Sul. Existe quem gosta de samba e de coisa boa", diz, quebrando a divisão de classes para sugerir uma divisão pela própria cultura.
Em outro momento, ela declara que infelizmente o samba ainda é visto como "uma coisa de marginais, do negro e do pobre" - assim como o baião, que precisou de artistas brancos como Alceu Valença e Elba Ramalho para ser respeitado em todo o país. E o que falta para o samba ser mais respeitado? Indaga outro repórter. "Falta brasilidade e negritude. Na verdade o Brasil é um país negro, graças a Deus", diz.
Também vemos Beth no palanque das Diretas Já, ao lado de Leonel Brizola, que apoiou nos primeiros turnos de 1989 e 1994, e do futuro presidente eleito Tancredo Neves; e reclamando para que compositores como seu amigo Almir Guineto ganhassem o mesmo que as cantoras como ela. Seu senso de democracia é tão forte que, num dado momento, ela é vista promovendo um plebiscito entre amigos na sua casa só para decidir quais músicas entrariam no seu próximo CD e quais ficariam de fora.
Não por acaso, Bronz abre o documentário com um encontro entre Beth e Mário Lago, sambista das antigas e comunista convicto, um homem que entendia a raiz social do samba. E termina com uma roda de samba bem na época da abertura democrática, no final dos anos 80, em que se improvisava "Brizola" e "Lula-lá" em meio ao clássico "O Show tem que Continuar", do Fundo de Quintal.
"Andança" se encerra com as imagens do último show de Beth, deitada numa cama em cima do palco por conta de seus graves problemas na coluna. Sábia, ela ri da própria condição. "Não tem Na Cama com Madonna? Agora tem Na Cama com Beth Carvalho", brinca. Como Elza Soares, Beth cantou até o fim. E como Elza, sempre soube que um país melhor e mais justo começa a ser construído não pelos políticos, e sim pelos artistas populares.
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