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'Medusa': Quando as religiões se unem ao patriarcado contra as mulheres
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Há sete anos, a revista Veja estampava um perfil da então primeira-dama Marcela Temer com três palavras que causaram furor na internet: "Bela, recatada e do lar". As feministas se enfureceram, muita gente se indignou com a ideia da primeira-dama como um apêndice do marido, mas pessoas mais conservadoras viram apenas virtudes nesses adjetivos. Era o início de um Brasil polarizado que só fez crescer na era Bolsonaro.
As três palavras são lembradas em "Medusa", de Anita Rocha da Silveira, filme que chegou nesta semana nos cinemas. Ele mostra um grupo de moças conservadoras, as Preciosas do Lar, que prezam pelo casamento, a virgindade e o comportamento à prova de julgamentos. Se parasse por aí, tudo bem, é cada um (ou uma) cuidando da sua vida. Mas as Preciosas se reúnem à noite para espancar meninas que não se curvam às regras delas e mostram comportamentos sexuais mais livres — incluindo aí LGBTs.
O tempo de "Medusa" foi longo: gestado em 2015, foi filmado em 2019 e chega às telas quatro anos depois. "Estamos lançando o filme já em outro momento, no governo Lula. Mas não acho que o filme ficou datado, porque ele trata de um avanço fascista e ultraconservador que no Brasil é muito ligado à moral e à religião, enquanto em outros países é mais ligado à xenofobia, por exemplo. Esse avanço está em todos os lugares, nos vídeos do YouTube, no discurso de muitos influencers", diz a diretora. (Veja a entrevista completa no podcast Plano Geral).
Longe de ser apenas um filme político com um discurso antirreligião, "Medusa" vai mais longe e explora as ambivalências das protagonistas. Mariana (Mari Oliveira) quer seguir as leis das Preciosas, mas começa a sentir desejos que entram em conflito com as ideias do grupo. Sua melhor amiga, Michele (Lara Tremouroux) tenta controlá-la a qualquer custo.
E no meio delas há um fantasma, a lenda de Melissa (Bruna Linzmeyer), cantora "promíscua" que causava horror naquela cidade conservadora e um belo dia desapareceu sem deixar vestígios. Por que Mariana e Michele querem encontrar Melissa a qualquer custo? Elas sentem só terror ou muito fascínio pela figura dessa mulher livre?
"Medusa" é um filme que explora como as religiões cristãs andam há séculos de mãos dadas com um patriarcado que impõem regras bem mais rígidas às mulheres do que aos homens. O tema anda tão em alta que está no centro de outro filme brasileiro que estreia na semana que vem.
"Raquel 1:1" (Capítulo 1 Versículo 1), de Mariana Bastos, mostra a jovem do título (papel de Valentina Herszage) que vai morar com o pai numa pequena cidade do interior depois de uma tragédia com a mãe. O pai é ateu, mas Raquel é cristã, e a primeira coisa que faz é procurar o grupo de jovens cristãs da comunidade. Mas ela logo começa a impor questões às colegas: "vocês acreditam em tudo o que a Bíblia diz sobre a mulher? Vocês concordam que a mulher é a origem do mal e do pecado?"
Não demora muito para Raquel, assim como a Melissa de "Medusa", ser demonizada na comunidade. A diretora bebe na fonte do clássico do terror "Carrie, a Estranha" (1976) numa história que mistura paranormalidade e feminicídio. Não por acaso, tanto "Medusa" quanto "Raquel" trabalham em torno do gênero terror - com o patriarcado aparecendo como o verdadeiro monstro a ser combatido.
Hollywood também anda atenta à questão desde a eclosão do #MeToo e o escândalo que levou à cadeia o produtor Harvey Weinstein, condenado por abuso sexual. "Entre Mulheres", ainda em cartaz e que acabou de vencer o Oscar de roteiro adaptado, é baseado num fato real ocorrido numa comunidade menonita da Bolívia.
As mulheres estavam sendo dopadas com tranquilizante de vaca para facilitar o estupro por membros da própria comunidade. Quando elas acordavam se sentindo mal, os homens alegavam, entre outros argumentos, que elas estavam sendo atacadas por espíritos do mal. "Entre Mulheres" faz melhor do que mostrar esses episódios grotescos: dá toda a palavra a elas, que têm que decidir se vão embora ou se ficam e lutam para reverter esse inferno.
Mas o melhor produto dessa safra é a minissérie "Em Nome do Céu", na plataforma Star+, que faz uma devassa no lado podre dos mórmons radicais em Utah, estado americano que concentra a maior parcela de religiosos dessa vertente no país (dois terços de sua população). Inspirada num crime dos anos 80, mostra o detetive Jeb (Andrew Garfield), ele mesmo mórmon, investigando o assassinato de uma jovem e sua filha da religião. Toda a investigação leva à família do marido dela, composta de um patriarca ultraviolento e seis filhos homens.
Alguns irmãos começam a se radicalizar e se voltar a preceitos das origens do mormonismo que incluem desobediência civil (recusa ao pagamento de impostos) e poligamia. Enquanto investiga, Jeb entra em crise religiosa e sofre todo tipo de pressão do bispo local para interromper a busca do assassino para que não se manche a reputação da igreja. É uma história de submissão (ou seria melhor dizer massacre) feminina, e do que pode acontecer àquelas que resolvem pensar diferente.
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