Topo

Thiago Stivaletti

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Atlanta' é a melhor série para entender a resposta de Vini Jr. ao racismo

Donald Glover, Lakeith Stanfield e Brian Tyree Henry em cartaz da série "Atlanta" - Reprodução / Internet
Donald Glover, Lakeith Stanfield e Brian Tyree Henry em cartaz da série "Atlanta" Imagem: Reprodução / Internet

Colunista do UOL

01/06/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Apesar de todos os sinais em contrário, o mundo tem salvação, e ela passa por entender o outro, aquele que é diferente de nós mesmos. Vivemos falando que a internet é o inferno, o poço sem fundo das fake news, mas foi ela também que possibilitou a Vini Jr, jogador brasileiro na Espanha, fazer um post que quebrou tudo e botou um país inteiro (da Europa) para revisar seus conceitos sobre racismo.

Em 2023, já deu para entender que nós, os brancos, precisamos nos revisar o tempo todo, lendo, ouvindo as experiências que as pessoas negras vivem em nossa sociedade em diferentes classes sociais. Em resumo: entender a realidade negra, já que a branquitude reina absoluta em nosso mundo, com seus conceitos, valores e privilégios mal disfarçados.

Para começar a entender o lugar da negritude, nada melhor do que "Atlanta", na Netflix. É uma série que tem muito mais a ensinar do que os pobres meninos bilionários e brancos de "Succession". "Atlanta" estreou em 2016 com produção de Donald Glover, rapper de sucesso nos EUA que, na música, atende pelo nome de Childish Gambino. Além de músico, Donald atua há muitos anos como roteirista, diretor e produtor de TV. Do seu lugar de fala, há anos batalha para fazer as questões negras mais visíveis na sociedade americana. Em 2010, lançou uma campanha no Twitter para que pudesse ao menos participar dos testes de elenco para o novo filme do Homem-Aranha. Stan Lee, criador do super-herói, acabou apoiando a iniciativa. Glover não conseguiu o papel, mas a Pequena Sereia negra de Halle Bailey em 2023 mostra que seu esforço não foi em vão.

Voltando a "Atlanta". A série não podia ser mais despretensiosa em sua história. Dois primos, Earn e Alfred (Glover e Brian Tyree Henry, indicado ao Oscar de coadjuvante este ano pelo filme "Passagem") vivem na cidade homônima ao título da série. Alfred sonha em se tornar um rapper de sucesso, com o nome artístico de Paper Boi, e Earn acaba se tornando seu agente e empresário. Na terceira temporada, a dupla já consolidou seu sucesso e faz uma turnê por várias cidades da Europa, ao lado do amigo Darius (Lakeith Stanfield, de "Judas e o Messias Negro").

As loucuras de Paper Boi rendem episódios divertidos, mas o forte desta terceira temporada são os episódios parênteses - aqueles que aparentemente não têm uma conexão direta com a trama principal da série. Fãs com saudade de "Black Mirror" (nome problemático) podem ir direto para o episódio 4, "A Grande Vingança". Marshall é um homem branco de classe média que acabou de se separar da mulher. Um dia, levando a filha ao colégio, ouve no rádio a notícia de um cidadão negro que processou um grande executivo da Tesla porque, no passado, seus ancestrais negros foram escravizados pelos tataravós brancos do réu. Esse homem ganhou o processo, teve direito a milhões de dólares e abriu precedente para que todos os cidadãos americanos negros fizessem o mesmo.

Não demora muito para que uma moça negra, Sheniqua, bata à sua porta dizendo que ele lhe deve 3 milhões de dólares porque os bisavôs negros dele escravizavam a família dela. É um episódio genial sobre a branquitude acuada, que propõe uma hipótese assustadora para os brancos, mas justa para os negros: e se a reparação histórica que as sociedades ocidentais fazem hoje na cultura chegar também à economia, afetando o bolso dos brancos - já que boa parte da sua riqueza foi construída em cima de trabalho de pessoas negras escravizadas?

O episódio 7 mostra um menino branco e rico que foi criado por Sylvia, uma babá de Trinidad e Tobago. A babá acabou de morrer, e o menino insiste que quer ir ao funeral dela. Depois de certa relutância, os pais aceitam, e pela primeira vez vão a um bairro de Nova York onde nunca botaram o pé. Além de aprender mais sobre o passado de Sylvia, que um dia foi uma bailarina brilhante, eles logo percebem que o menino criou muito mais afinidade com a cultura da babá do que com os pais, que nunca param em casa para cuidar dele. É a velha história de centenas de babás, em geral negras, que deixam seus filhos em casa para ganhar a vida criando as crianças brancas. Um episódio que mistura humor e drama na medida certa, com uma crítica mordaz nas entrelinhas.

Ao final da temporada, saímos com a certeza de que os brancos nunca vão saber o que é ser um homem ou uma mulher negra numa sociedade como a americana (ou a brasileira). Mas a série ao menos os ajuda a exercitar a empatia e a compreensão, para aos poucos melhorar suas atitudes.

As três primeiras temporadas de "Atlanta", com 10 a 11 episódios cada uma, já estão disponíveis na Netflix. A quarta, lançada no final do ano passado nos EUA pelo canal FX, ainda não chegou por aqui.