Depois da covid, como lidar com a pandemia de festivais de música?
Ninguém podia imaginar, mas o fim da pandemia de covid-19 trouxe uma outra pandemia ainda mais forte: a dos festivais de música. Nos meus quase 45 anos, fico cansado só de ver a agenda de festivais que tomou conta do eixo Rio-São Paulo nos últimos anos: Lollapalooza, Coala, Queremos, The Town, Doce Maravilha, Rock in Rio, Nômade, Primavera Sound, e por aí vai. Nas conversas, os amigos naturalmente trocam um pelo outro - ainda mais porque, no quesito MPB, os mesmos artistas se apresentam em todos. Sim, você vai ver Gil, Baiana System, Caetano Veloso, Liniker, Gilsons, Luisa Sonza e Marina Sena em boa parte deles.
A pandemia de festivais de música poderia ser algo apenas bacana, mas impõe alguns dilemas. O pessoal de vinte anos tem pique pra ir em todos mas, tirando um ou outro filho de empresário, não vai ter bolso pra pagar mais de R$ 500 de ingresso em todos eles, e terá que fazer escolhas. Nós, os de quarenta, já ganhamos um pouco melhor, mas aí é a saúde que falta para encarar cinco shows na sequência, de pé. Por obra da publicidade, somos bombardeados meses antes com uma pressão canalha: não somos ninguém se não pusermos os pés no The Town e não nos juntarmos aos jovens felizes que aparecem nos vídeos calculadamente editados que os organizadores postam todo dia nas redes. Mas, se Caetano cantava nos anos 60 "Quem lê tanta notícia?", hoje ele poderia cantar "Quem vê tanto show?" numa das centenas de apresentações da turnê "Meu Coco" que ele faz dentro e fora dos festivais.
Junte-se a todo esse cenário um sinal que os anjos do Apocalipse nos enviam contra essa onda maciça de música e alegria: as chuvas torrenciais. Só nas últimas semanas, a natureza enviou três sinais divinos para nos dizer "Calma, galera, música é bom, show é muito legal, mas não tem nada errado em passar um sábado ou domingo à noite lendo um bom livro em casa". Eu estava lá no Rio em agosto, no segundo dia do Doce Maravilha, quando a chuva incessante na Marina da Glória foi minando, hora após hora, o prazer de ver qualquer show.
Para enfurecer boa parte do público que tinha ido ver Caetano cantar seu celebrado álbum "Transa", de 1972, o festival anunciou em cima da hora que a apresentação não rolaria mais às 20h30, como estava programado, e não tinha hora para acontecer. Corta para centenas de pessoas de todas as idades com celular na mão, consultando o twitter do festival e do Caetano para ver se alguém anunciava oficialmente que o show tinha sido cancelado. Vi imagens altamente desoladoras, como Malu Mader e Tony Bellotto passando cabisbaixos do meu lado, desistindo de esperar e indo embora - Maria Clara Diniz, a superprodutora de eventos que Malu viveu na novela "Celebridade", jamais deixaria esse mico acontecer. No fim, Caetano foi aparecer depois da 1h da manhã, madrugada de domingo pra segunda, em outro palco - e (na real, isso dá muita raiva) fez a espera e a ameaça de gripe valer a pena. Fez um show impecável ao lado de Jards Macalé, o que só me fez lamentar mais ainda por todos que foram embora. Mas a chuva realmente não estava pra brincadeira.
O primeiro dia do The Town, semana passada, também foi atrapalhado (ou estragado mesmo, pra muitos) pela chuva. Cenas de fim do mundo, como praça de alimentação lotada, tumulto e centenas de memes na linha "perrengue chique" rolaram. Ouvi dizer que o Cacique Cobra Coral, que promete aos organizadores evitar a chuva, entrou em recesso por tempo indeterminado - não está dando conta de tantos pedidos, pois há festivais todo fim de semana, e em alguns deles, sinto muito, vai ter que chover.
Mas Apocalipse mesmo, de verdade, real oficial, rolou no Festival Burning Man, no deserto de Nevada, EUA, na semana passada. Mais de 70 mil pessoas ilhadas numa chuva torrencial, sem conseguir ir embora por conta da lama nas estradas, gente tentando ir embora a pé, sargento dando entrevista à CNN pedindo calma às pessoas. Enquanto isso, nas redes, alguns frequentadores postando fotos de puro êxtase no dilúvio, posando com figurinos exóticos em meio ao deserto e à lama, jurando pros seus seguidores que o rolê valeu a pena. Eu achei que o mundo ia acabar em meio a um grande incêndio, mas hoje vejo que estava enganado. Nosso último dia na Terra será com muita chuva, mas com Caetano Veloso e Bruno Mars brilhando no palco.
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