'The Morning Show' segue imperdível com cancelamento e ataque cibernético
Sempre sofri de um terrível problema com as séries. Chama-se a síndrome da terceira temporada. Eu me envolvo com os personagens, quero saber como a vida deles continua na segunda temporada e tal.
Quando começa a terceira, um bode terrível toma conta de mim. Sinto que já sei tudo daquelas vidas, farejo no ar os produtores fazendo qualquer coisa para seguir com uma série que está dando lucro e audiência, sem aquele mínimo de vontade artística genuína para seguir com aquela história.
Aconteceu com "Lost", "True Blood", "House of Cards", "Desperate Housewives" e tantas outras. Só não aconteceu, claro, com "Breaking Bad". E espero que não aconteça com o atual amor da minha vida, "The White Lotus", quando a terceira estrear (o que só deve acontecer em 2024, devido à greve dos roteiristas e atores).
Comecei a terceira temporada de "The Morning Show", na Apple TV+, com esse mesmo temor: após derrotarem um macho tóxico na era do #MeToo e enfrentarem a pandemia, o que Alex Levy (Jennifer Aniston) e Bradley Jackson (Reese Witherspoon) ainda teriam na manga para nos comover?
E eis que, em apenas três episódios, a série sobre o telejornal matutino mais visto dos EUA já nos colocou de novo no olho do furacão dos grandes problemas que assolam o mundo (ou ao menos a nossa pobre cultura ocidental) em 2023.
No lugar de Mitch Kessler (Steve Carrell), o assediador que ancorou por décadas o telejornal e foi sumariamente cancelado, agora temos um gigante mais poderoso: o multibilionário da tecnologia Paul Marks (Jon Hamm, de "Mad Men"), que quer comprar a UBA (emissora do "The Morning Show").
Marks é claramente calcado em Elon Musk, o magnata que comprou o X (antigo Twitter) por US$ 44 bilhões. Marks despreza a velha mídia e não vê valor algum no jornal mais querido da América. Seu interesse é usar o prestígio de Alex embarcando-a num novo foguete rumo ao espaço — aquela mistura perigosa de jornalismo com publicidade a que vamos nos acostumando a cada dia que passa.
Contra isso, temos a boa e velha sororidade entre Alex e Bradley — e não é o menor dos méritos da série reforçar o companheirismo das duas quando esperaríamos apenas rivalidade e competição.
Bradley está apurando uma grande reportagem sobre uma rede de aborto ilegal no Texas, com uma jovem líder que tenta ajudar outras moças a evitar as perigosas clínicas clandestinas conseguindo pílulas para elas. Desnecessário dizer que a pauta não comove nem um pouco os homens que ocupam a hierarquia da UBA, e as duas terão que batalhar por conta própria para que a reportagem veja a luz do dia.
E não para por aí. "The Morning Show" ainda traz o fantasma cada vez mais presente do ataque cibernético, que pode devassar dados digitais de celulares e expor emails e conversas íntimas. A devassa expõe tudo aquilo que sabemos que existe nas grandes empresas: desigualdade salarial atroz entre homens e mulheres, brancos e pretos, e um tratamento totalmente diferente nas exigências e critérios de seleção entre uns e outros.
Mas não basta elencar todos esses grandes temas do mundo de hoje; o roteiro da série criada por Jay Carson, produtor que trabalhou no gabinete de Hillary Clinton e deu consultoria política para "House of Cards", nos faz sentir todas essas angústias "em tempo real".
Saímos dos episódios de "The Morning Show" sentindo todo o peso do mundo, mas também entendendo melhor como e por que chegamos até aqui. A saída para toda essa barafunda... essa nem Carson encontrou ainda.
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