Thiago Stivaletti

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Opinião

Filmes sobre Mussum e Grande Otelo discutem a comédia e o racismo no Brasil

A safra de novos longas brasileiros que serão lançados no Festival do Rio, que começa nesta quinta (5), e na Mostra de São Paulo, que começa no próximo dia 19, vai permitir a revisão de grandes nomes do nosso cinema. Dois deles, Grande Otelo e Mussum, foram os dois comediantes pretos mais populares do país.

Nascido em Ubelândia, Sebastião Prata, o Grande Otelo, participou de cerca de 115 filmes. Ficou mais conhecido por sua histórica parceria com Oscarito nas chanchadas da Atlântida, mas também teve presença fundamental em obras do Cinema Novo ou do cinema social que vicejou a partir dos anos 60: "Macunaína", "Rio Zona Norte", "Assalto ao Trem Pagador". Além do talento imenso para a comédia, sua presença era tão forte, a expressividade de seu rosto tamanha, que ele não deixou de atrair a atenção de estrangeiros no Brasil, como Orson Welles, Werner Herzog, Marcel Camus.

"Othelo, o Grande", documentário fundamental de Lucas Rossi dos Santos que faz sua estreia no Festival do Rio, abre com o ator no sofá de sua casa, pequeno, frágil, olhar perdido. Ao longo do filme, essa imagem vai nos deixando em prol do artista que, além do talento, precisou de muita coragem para enfrentar produtores brancos que insistiam em lhe pagar menos que aos colegas brancos.

Grande Otelo em cena do documentário "Othelo, o Grande"
Grande Otelo em cena do documentário "Othelo, o Grande" Imagem: Divulgação

Como ao longo de todo o século 20, o racismo era escancarado na dramaturgia e na comédia, fosse no cinema, no teatro ou na TV, é chocante ver hoje Otelo protagonizando cenas em que ouve coisas do tipo: "Como pode uma ideia tão clara sair de uma cabecinha tão preta?". Mas na época isso fazia rir sem pudor. Ao fim do filme, a grandeza de Otelo se impõe - mas o modo insidioso como ele é pouco lembrado atualmente diz muito sobre o nosso racismo velado.

Foi justamente Grande Otelo que deu a Antônio Carlos Bernardes Gomes, um sambista da zona norte do Rio que iniciava carreira na comédia, o apelido de Mussum, um peixe preto. Os dois atuaram juntos em 1965, num humorístico da TV Globo, que acabava de ser fundada. O episódio está contado em "Mussum - O Filmis", de Silvio Guindane, em que Ailton Graça brilha na pele do artista que ganhou o Brasil integrando Os Trapalhões.

Ao contrário do documentário sobre Otelo, a ficção de Guindane evita qualquer abordagem frontal do racismo na trajetória de Mussum - não por covardia, mas para mostrar Mussum pelos seus próprios méritos, independente do olhar dos produtores e diretores brancos.

"Mussum - O Filmis" recorda que o personagem Mussum começou a crescer na Escolinha do Professor Raimundo de Chico Anysio na Tupi antes de brilhar nos Trapalhões. Neste filme, ironicamente, pela primeira vez, vemos Mussum como protagonista da história do quarteto, em vez do Didi de Renato Aragão (vivido por Gero Camilo).

O roteiro aborda de maneira discreta, mas contundente o racha que o quarteto viveu em 1983, quando Dedé, Mussum e Zacarias decidiram estrelar um filme longe de Didi ("Atrapalhando a Suate"). E o dilema que foi para Mussum ter que abdicar da carreira de sambista, no notório grupo Os Originais do Samba, para abraçar de vez a comédia. E toca bem de leve numa das principais críticas que se faz hoje ao personagem: o de fazer graça em torno da figura do "preto cachaceiro", reforçando estereótipos. Assim como aconteceu com Otelo, não se tratava de uma decisão do artista: era aceitar as regras do jogo ou cair fora dele.

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Além da justa homenagem a um dos nossos maiores comediantes, Guindane, o diretor, usa a luz de Mussum para fazer brilhar todo um elenco preto em torno dele, com destaque para Cacau Protásio e a grande Neusa Borges vivendo com paixão a mãe do humorista na juventude e na velhice. "Mussum" e "Othelo" precisam ser vistos, para entender o quanto o lugar do artista preto mudou no Brasil - ou em que aspectos, infelizmente, ele ainda segue limitado e subvalorizado.

OTHELO, O GRANDE
Estreia nos cinemas em 2024
Estação Net Gávea, Rio de Janeiro, dia 13/10 às 17h
Cine Odeon, Rio de Janeiro, dia 14/10, às 10h30, seguida de debate

MUSSUM - O FILMIS
Estreia dia 2 de novembro em todo o país
Cine Odeon, Rio de Janeiro, dia 12/10, às 19h30
Kinoplex São Luiz, Rio de Janeiro, dia 15/10 às 16h30

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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