'Pedágio' aborda nossa polarização política sem falar em Bolsonaro e Lula
Que o Brasil é um país dividido, sabemos desde a eleição de 2018. Quem é de esquerda e acha que a onda neoconservadora morreu com a eleição de Lula em 2022 e as prisões dos golpistas do 8 de janeiro certamente vive uma fantasia para se proteger de futuras frustrações que certamente virão.
Paulo Emílio Salles Gomes, nosso maior intelectual dedicado ao cinema, uma vez proferiu uma frase que às vezes é motivo de deboche: "O Brasil produz o melhor cinema brasileiro do mundo". A ironia é de propósito. Por mais óbvio que pareça, ele quis dizer que só o cinema brasileiro pode retratar o brasileiro, as profundas contradições de nascer e viver neste país. Algo que Hollywood não vai fazer nunca.
A melhor vitrine recente das nossas contradições é o filme "Pedágio", de Carolina Markowicz, que estreia nos cinemas nesta quinta, dia 30. O filme já chega com aclamação: selecionado no Festival de Toronto, levou quatro prêmios no Festival do Rio (incluindo ator e atriz) e foi selecionado na Mostra de Cinema de Gostoso, no Rio Grande do Norte, onde foi exibido com sala lotada.
É a história de Suellen (Maeve Jinkings), mãe solteira que ganha muito mal trabalhando no sistema de pedágio da rodovia Anchieta-Imigrantes - aquele que, privatizado, já anda cobrando mais de R$ 35 para o paulistano que quer curtir um fim de semana de praia em Santos. Suellen namora Arauto (Thomas Aquino), sujeito que faz parte de uma quadrilha de golpes aos carros mais bacanas que circulam na estrada. E é mãe de Tiquinho (Kauan Alvarenga), jovem negro e gay. Suellen não se conforma com a identidade de gênero e a sexualidade do filho e decide mover mundos e fundos (inclusive ilegais) para pagar ao garoto uma cara e duvidosa "terapia de cura gay", ministrada por um "conhecido" pastor estrangeiro.
Tiquinho é um típico "Geração Z" que aprendeu com a internet que ele não está sozinho, existem muitas outras pessoas LGBTQIA+ no mundo, e só há motivo para orgulho e não vergonha. Já sua mãe foi criada num ambiente conservador, se preocupa que o filho seja chamado de "traveco" na rua e possa sofrer com o mundo lá fora - e não percebe que o sofrimento começa em casa, com a rejeição dela. Mais fácil do que aceitar o filho é entrar no esquema do namorado para enriquecer. Com uma história simples e complexa ao mesmo tempo, "Pedágio" retrata aquela triste máxima que mais de um político já proferiu em campanha: "Prefiro ter um filho corrupto do que um filho viado". E acaba mostrando a nossa polarização política e de costumes sem nem precisar falar em Bolsonaro ou Lula.
As cenas das oficinas de cura gay soam patéticas a qualquer pessoa que leia um mínimo de notícias confiáveis e acredite na ciência. Carolina, a diretora, defende que infelizmente esse patético não é privilégio da ficção. "A gente vive num momento em que absurdos se confundem com a realidade. Vivemos num país onde um senador fala que a Frozen é lésbica e as crianças não deveriam brincar com a boneca da personagem. Alguém que se julga apto a curar algo que nem é uma doença já está num lugar de violência e de ridículo, e eu sempre quis retratar isso", disse em entrevista ao nosso videocast Plano Geral.
Maeve concorda. "Minha mãe e meus avós viveram sob a ditadura. Eu cresci já na abertura democrática. Sem querer, minha geração criou a ilusão de um Brasil progressista e libertário que não era bem assim. Hoje, estamos descobrindo a face de um país que pessoas da minha idade atribuíam ao passado: um moralismo extremo, a tentativa de controlar a sexualidade dos outros", diz. O caminho de Suellen, como veremos, não vai levá-la a nenhuma iluminação, segurança ou felicidade - muito pelo contrário. O Brasil continua fazendo o melhor cinema brasileiro do mundo - e talvez um dos mais dolorosos também.
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