Thiago Stivaletti

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Opinião

Festivais do Nordeste discutem a dor e a delícia de ser brasileiro

Dois festivais do Nordeste que rolaram nos últimos dias, a Mostra de Cinema de Gostoso (RN) e o Fest Aruanda (de João Pessoa, PB) mostraram como o cinema brasileiro anda preocupado em discutir os grupos identitários e seus sofrimentos neste primeiro ano do governo Lula 3.

Foi um momento em que os filmes voltaram a receber financiamentos e uma grande parcela da população abafada pela extrema direita volta a se ver mais nas telas. A força da identidade preta se fez sentir em filmes como o curta paraibano "Céu", que relembra a louceira Maria do Céu, membro da Comunidade Quilombola Serra do Talhado, que foi vítima de feminicídio em 2013.

Ou no curta paranaense "Emerenciana", que recupera a história de uma antiga estátua do centro de Curitiba, nomeada apenas de Maria Lata d'Água. A diretora Larissa Nepomuceno restitui o nome certo da mulher, Emerenciana Cardoso Neves, lembrando que o apagamento das identidades pretas passa muitas vezes pelo aniquilamento do nome e a criação de um apelido pelos brancos.

Grande Otelo em cena do documentário 'Othelo, o Grande'
Grande Otelo em cena do documentário 'Othelo, o Grande' Imagem: Divulgação

Entre os longas, "Othelo, o Grande", documentário sobre Grande Othelo, o maior ator da história do cinema brasileiro, resgata um homem talentoso, culto, resistente, que muitas vezes foi obrigado a ceder e interpretar textos de cunho racista que, na época, não eram vistos como tal.

E "Black Rio! Black Power!" resgata os bailes de soul music no Rio de Janeiro dos anos 1970, reprimidos pela ditadura justamente por reafirmarem o orgulho de ser preto.

Os festivais ainda mostraram um Brasil preocupado com os ventos do progresso cego, que tem gerado mudanças climáticas e muitos prejuízos aos mais pobres. No longa paulista "Citrotoxic", de Julia Zakia, uma mãe passa uns dias com a filha asmática no campo para que ela se recupere, mas se depara com uma plantação dominada apelos agrotóxicos.

No documentário "Samuel e a Luz", que encerrou a Mostra de Gostoso, um grupo de pescadores de Ponta Negra, na Costa de Paraty, se depara com a chegada em massa do turismo, a diminuição dos peixes na costa e vê o seu modo de vida ameaçado de extinção. Pescadores também se veem ameaçados por mudanças climáticas no curta paranaense "Sereia", de Estevan de la Fuente.

Enquanto o espaço para as chamadas minorias identitárias cresce, mantém-se a tendência tradicional de buscar no mundo da música histórias que cativem o público. Depois do sucesso de "Elis & Tom", o Aruanda abriu com o documentário "Nada Será como Antes - a Música do Clube da Esquina", de Ana Rieper, resgate do álbum histórico produzido pela turma de Milton Nascimento, Lô Borges, Wagner Tiso e outros mestres.

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"Saudosa Maloca", de Pedro Serrano, traz Paulo Miklos num retrato ficcional de Adoniran Barbosa, o mais célebre sambista de São Paulo. O filme reforça a onda de filmes biográficos de artistas da música, filão que está próximo da saturação num ano que teve "biopics" de Gal Costa, Claudinho & Buchecha, Sidney Magal, Mamonas Assassinas, Chitãozinho & Xororó (em série da Globoplay) — e que terá ainda o longa sobre Ney Matogrosso em 2024.

Toda essa efervescência da produção se choca com uma cruel realidade de exibição, num período em que o cinema brasileiro conquistou uma fatia minúscula de bilheteria. Falta aos festivais discutir com mais urgência como esse cinema pode aumentar o seu público.

Paulo Miklos e Christian Malheiros em 'Saudosa Maloca' , de Pedro Serrano
Paulo Miklos e Christian Malheiros em 'Saudosa Maloca' , de Pedro Serrano Imagem: Divulgação

Nos streamings, a guerra é intensa e enfrenta a forte competição das séries, gringas ou nacionais. Nas salas de cinema, a guerra acontece com as verbas de divulgação de cada filme — um lançamento de Hollywood tem muito mais bala na agulha do que um filme brasileiro como o baiano "Saudade Fez Morada Aqui Dentro", de Haroldo Borges.

Exibida nos dois festivais, a história dos dois irmãos em que o mais velho está perdendo a visão tem uma força e uma delicadeza que chegaria facilmente ao Oscar se fosse um projeto americano — quem sabe a difusão garantida pela Netflix ajude na campanha do ano que vem a uma vaga na categoria filme estrangeiro.

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E é preciso mexer no preço do ingresso nas salas, que pode chegar a R$ 40 nas salas de cinema das grandes capitais. O espectador médio pode até pagar isso para ver as grandes batalhas de "Napoleão" ou outro filme de ação de grande orçamento, mas resiste em relação a filmes menores.

De qualquer modo, é preciso voltar a sonhar com ao menos 10% da bilheteria para filmes nacionais - e esse sonho passa por muita discussão de estratégias por todos os envolvidos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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