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Como 'Pequena Mamãe' usa fantasia para contar história sobre amor e luto

As irmãs Gabrielle e Joséphine Sanz interpretam Marion e Nelly em 'Pequena Mamãe' Imagem: Divulgação

Laysa Zanetti

De Splash, em São Paulo

03/03/2022 04h00

Em 2019, a diretora francesa Céline Sciamma encantou o mundo do cinema com o drama romântico "Retrato de uma Jovem em Chamas". Apesar de contemplativo, o filme é um projeto grande em escala, escopo e intenção. Para o seu trabalho seguinte, a diretora vai pelo caminho inverso, e entrega um filme menor em tudo: em duração, em escala e na idade de suas protagonistas.

Mesmo assim, o intimista "Pequena Mamãe" não deixa de ser um drama igualmente grandioso em significado e em ambição.

'Pequena Mamãe'

Lançamento: 2022 Duração: 1h12min Pais: França Status: Em cartaz Direção: Céline Sciamma Roteiro: Céline Sciamma
splash
4,8 /5
ENTENDA AS NOTAS DA REDAÇÃO

5,0

5,0

5,0

Fizemos uma análise geral de cenário, figurino, direção de arte e fotografia

5,0

4,0

A diversão é uma nota na qual propomos, que independente das notas técnicas, a produção vale ser vista

Pontos Positivos

  • A diretora possui total domínio das cenas e dos atores
  • O roteiro, ainda que introspectivo, deixa claras as intenções do filme e o simbolismo da história
  • O elenco, sobretudo o infantil, toma conta das cenas com delicadeza e maestria
  • É um filme conciso, que conta sua história de maneira objetiva e direta

Pontos Negativos

  • O ritmo do filme, ainda que seja conhecido para quem já acompanha o trabalho da diretora Céline Sciamma, pode causar estranhamento em alguns espectadores, por ser um pouco mais lento

Veredito

O filme usa artifícios do cinema fantástico para contar uma história intimista sobre a relação entre mães e filhas e o processo de luto familiar. O fato de as atrizes principais serem duas crianças concede à história um ar infantil e simples, mas jamais simplista ou que subestime a audiência. É um filme leve, doce e sentimental.

O filme conta uma história de dor, luto e distanciamento através do olhar simples (mas, nem por isso, simplório) de uma criança. Nelly (Joséphine Sanz), aos 8 anos, perde sua querida avó. Em uma das primeiras cenas do filme, ela assiste do banco de trás do carro a quando seus pais compartilham um abraço carinhoso. Apesar das poucas palavras, o público logo entende o quanto aquilo mexe com ela.

À distância, tanto física quanto emocionalmente, a garota percebe que aquele abraço tem um peso diferente. Ele demonstra não apenas uma espécie de bloqueio sendo quebrado entre seus pais, mas transparece que algo também se quebra dentro de Nelly.

Ali, ela entende que sua mãe não nasceu sendo mãe. Afinal, antes disso ela foi uma filha, uma criança e alguém como ela.

Para fazer essa reflexão e mostrar sob um ângulo diferente o que é a relação entre uma mãe e uma filha, Céline Sciamma usa o lúdico, um universo de fantasia que usa traços de viagem no tempo e paradoxos espaciais.

Parece complicando, mas a diretora usa tais artifícios de uma maneira muito perspicaz. Ela faz isso com cuidado para que a fantasia nunca saia do tom ou roube a cena para si. Por isso, "Pequena Mamãe" é muito mais um filme sobre relações familiares do que sobre o que faz aquela filha encontrar a versão infantil da própria mãe.

Oi? Como isso acontece?

Após a morte da avó, Nelly vai com os pais para a casa onde sua mãe cresceu. A família está lá para esvaziar local que, antes cheio de vida, agora está inabitado.

Nelly vive aquela casa tentando refazer a infância da mãe, descobrir como eram sua rotina e suas brincadeiras. Ela tenta se aproximar da mãe de uma forma carinhosa, delicada e sentimental, numa busca por acalentar na outra o luto que ela mesma sente.

Mesmo com poucos diálogos, há algo sobre o cinema de Sciamma que faz com que seus atores digam muito com o olhar. Nelly é uma garota atenta, que entende a dor que sua mãe sente, apesar de nenhuma das duas dizer diretamente quais são seus sentimentos. Ela entende que sua mãe está se afastando, pois todas as memórias que tinha de sua infância eram compartilhadas apenas com a mãe dela — que já não está mais com ela.

Quando acorda certo dia e descobre que sua mãe foi embora e a deixou sozinha com o pai para terminar a limpeza, Nelly sai para explorar as redondezas e encontra na floresta uma garotinha de sua idade, brincando no local onde sua mãe costumava brincar, construindo uma cabana onde sua mãe havia construído a dela.

Em 'Pequena Mamãe', diretora Céline Sciamma faz um retrato intimista do luto e das relações familiares, calcado na fantasia Imagem: Divulgação

A menina, estranhamente parecida com Nelly, compartilha o nome de sua mãe, Marion, e mora em uma casa como a de sua avó, com móveis mais antigos e uma pintura também mais envelhecida. O título do filme, sem segredo, já havia entregado o que aconteceu aqui.

Poderia ser uma história retirada diretamente de algum filme ou série de ficção científica, algum "Black Mirror" ou "Além da Imaginação" por aí, mas "Pequena Mamãe" jamais deixa que este lado da fantasia tome o lugar central da trama.

Nelly está convivendo com a versão de oito anos de idade de sua mãe, que ainda tinha a própria mãe e seus sonhos infantis. Isso faz com que ela consiga enxergar Marion de outra forma, e a entenda como alguém não muito diferente de si mesma. A relação entre as duas é quase fraternal, e quanto mais séria a situação ao redor delas vai ficando (uma iminente cirurgia, a partida de Nelly e seu pai, o entendimento do que está acontecendo), mais elas se divertem com a leveza do que sentem.

É justamente por causa desse viés infantil que a descoberta de Nelly é abordada de forma serena. A vivência com sua mãe em "outra versão" faz com que as duas compartilhem uma confidência especialmente única e singular, um laço entre mãe e filha como pessoas iguais, e não em uma relação de subordinação.

O resultado é um filme fantástico em execução e em desenvolvimento dos personagens, que aborda as cenas entre Nelly e a jovem Marion (Gabrielle Sanz) com naturalidade e lucidez. Os diálogos entre as duas personagens (vividas por atrizes que são irmãs na vida real) refletem sob o olhar simples de crianças o que significa a morte e a passagem do tempo, e como as relações humanas são definidas pelo tipo de conexão que criamos com o outro.

'Pequena Mamãe': Céline Sciamma fala sobre a mais natural das evoluções dos laços familiares, que acontece quando filhos começam a enxergar os pais como seres humanos Imagem: Reprodução

Por meio da da fantasia, Céline Sciamma fala sobre a mais natural das evoluções dos laços familiares, que acontece quando filhos, em seus lugares de proles, começam a enxergar os pais como seres humanos que já existiam antes de eles nascerem.

Por isso, apesar do ponto de partida triste e vazio da morte, "Pequena Mamãe" é um filme extremamente doce, que traz uma mensagem de esperança e afeto e conversa da mesma forma delicada e carinhosa com todas as idades.

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