'Vale Night': filme prova que as favelas vão além de violência
Laysa Zanetti
De Splash, em São Paulo
16/03/2022 04h00
No roteiro original do que se tornou "Vale Night", o público acompanharia um casal de classe média, branco, com um bebê de colo. O conflito principal começaria quando a mãe resolvesse tirar um dia de spa, e o pai, amante de rock, resolvesse ir para o festival Lollapalooza, e isso resultaria na perda da criança.
Nas mãos do diretor Luis Pinheiro e do roteirista Caco Galhardo, no entanto, as coisas se transformaram e tomaram ares brasileiros. O resultado é um filme que vai além do puramente cômico, e se torna um produto do próprio tempo, que denuncia um problema sem reforçá-lo e sem perder de vista que veio, antes de tudo, para ser divertido.
Vale Night
Lançamento: 2022 Duração: 93min Pais: Brasil Status: Em cartaz Direção: Luis Pinheiro Roteiro: Ian Deitchman, Kristin Rusk Robinson (ideia original), Caco Galhardo, Renata Martins, Carla Meirelles4,0
4,0
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Fizemos uma análise geral de cenário, figurino, direção de arte e fotografia
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A diversão é uma nota na qual propomos, que independente das notas técnicas, a produção vale ser vista
Pontos Positivos
- Elenco introsado e personagens diversos, com dramas particulares e que não servem apenas no auxílio ao roteiro
- Uma abordagem refrescante da vida nas comunidades, que não foca na violência e sim na vida comum
Pontos Negativos
- O 3º ato perde força na conclusão, com um desfecho que não aproveita o potencial dramático que havia disponível
Veredito
Leve, divertido e com um elenco muito introsado e carismático, 'Vale Night' reúne comédia e drama para contar uma história que tem muitas raízes brasileiras e jamais perde de vista a relevância da mensagem social. Os clichês do gênero são bem utilizados e fazem do resultado algo conciso e ágil, apesar de algumas derrapadas.
A história ainda acompanha dois jovens. Ao invés de serem brancos da classe média, são negros e moram na periferia de São Paulo. Ela é Daiana (Gabriela Dias), que abandonou os estudos para cuidar do filho. Ele é Vini (Pedro Ottoni), um garoto tão desligado quanto simpático, que corta cabelos para ganhar dinheiro mas gosta mesmo é de dançar passinho.
O filme situar os personagens em um contexto político-social mais pungente, que informa tanto sobre a história e sobre os protagonistas, não é algo decidido ao acaso.
Dentro de uma comunidade e em meio a uma população de classe baixa, a maternidade prematura ganha outros ares e torna-se um símbolo. Para cuidar do filho, Daiana é forçada a largar a escola, embora sua mãe (vivida por Tia Má) peça várias vezes e sem sucesso para que ela retome a própria vida.
As dificuldades de Daiana e, por extensão, de um Vini um tanto irresponsável, vão além da logística e do tempo necessários para cuidar de um filho, embora estes sejam fatores importantíssimos. A imaturidade, a escassez de recursos financeiros e as prioridades cruzadas também estão em jogo, e quando Daiana é convencida pela mãe a passar um fim de semana fora, na casa da avó (Neusa Borges), Vini precisa deixar para trás a pose de desligado e assumir, de verdade, a responsabilidade de pai.
O roteiro dinâmico que coloca Vini em situações despojadas, por si, é uma força a favor do filme, que nunca fica parado por muito tempo no mesmo lugar antes de partir para a confusão seguinte. Entre fraldas sujas, louças na pia e um bebê choroso, Vini encontra saídas com calma e tranquilidade, e tudo parece fluir com leveza antes de a situação ruir.
Mesmo assim, o roteiro sozinho não basta, e o filme acaba contando muito com o carisma de Pedro Ottoni para fazer a história caminhar com naturalidade.
O jovem ator, que recentemente apareceu na série "De Volta aos 15", da Netflix, domina as cenas com tranquilidade e com um humor que lhe parece extremamente espontâneo. Ottoni, aos poucos, desponta como um dos novos e bons nomes do humor brasileiro. E, considerando que o filme depende tanto de suas nuances e do equilíbrio entre o humor e o drama, o carioca da zona norte do Rio entrega um trabalho consideravelmente maduro — sobretudo levando em conta que é uma das primeiras grandes produções das quais ele participou.
No decorrer da história, Vini acaba saindo pela comunidade com o filho no colo, e perde o bebê em um momento de distração. O que se segue é uma sequência de ações aleatórias que colocam a criança cada vez mais longe do pai enquanto ele sai desesperado tentando consertar o seu erro — e sentindo, pela primeira vez, o peso de colocar uma criança no mundo.
Os arquétipos de uma comédia de erros, bem empregados na busca da criança executada por Vini com a ajuda de Linguinha (Yuri Marçal) e DJ Pulga (Linn da Quebrada), levam o filme a este lugar em que se torna uma espécie de caça ao tesouro. Neste sentido, a caçada é divertida, ainda que recheada de clichês que povoam filmes do gênero. E, aqui, vale ressaltar: quando bem aproveitados, os clichês podem ser ótimos recursos narrativos.
Apesar do tom cômico da caçada, o desespero de Vini para achar a criança (e fazer isso antes de Daiana descobrir o que aconteceu) vai crescendo aos poucos, até que o filme chega ao seu clímax emocional na construção deste personagem.
É neste sentido que "Vale Night" cruza o caminho e vai além do óbvio. A comédia é divertida e competente, mas o filme cresce nos detalhes, que estão nas construções familiares, nas redes de apoio que aqueles personagens têm e em como coexistem com os lugares onde moram. Daiana, criada pela mãe, tem uma família formada majoritariamente por mulheres; Vini parece ser um rapaz solitário, já que pai ou mãe não estão na história.
Para falarmos de famílias brasileiras, essas heranças importam. E a história entende isso muito bem.
Ao situar um filme definido como comédia romântica em uma comunidade, sem armas, sem tráfico e sem violência, há uma declaração social e política importante sendo feita, a respeito da importância das vozes plurais no cinema e no audiovisual.
Sob esta mesma ótica, "Vale Night" jamais perde de vista a relevância de uma mensagem social na história, e faz isso sem deixar que a moral assuma o protagonismo e fique excessiva. Há uma diminuição do ritmo e do impacto na conclusão do terceiro arco, mas isso jamais faz com que a história perca sua força. No fim das contas, é um filme leve, divertido e muito consciente do papel da comédia dentro dos debates mais sérios.