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70 anos de TV

A história da televisão no Brasil


Divisão entre assunto de homem e mulher está superada, diz diretor da Globo

Hebe Camargo, Maximira, Branca e Liria, apresentadoras do programa o "Mundo é das Mulheres", um dos primeiros programas femininos da TV brasileira - Folhapress/Arte UOL
Hebe Camargo, Maximira, Branca e Liria, apresentadoras do programa o "Mundo é das Mulheres", um dos primeiros programas femininos da TV brasileira Imagem: Folhapress/Arte UOL

Beatriz Amendola

De Splash, em São Paulo

23/09/2020 04h00

A declaração de Amauri Soares, diretor de programação da Globo, mostra que os tempos mudaram e que a TV está atenta a isso. Embora as alterações de formato e conteúdo ainda não sejam drásticas, os tradicionais programas femininos têm ampliado seu foco para atender o público que procura informação e entretenimento, independentemente do gênero.

"Não há diferença entre o que a mulher busca e o que o homem busca. O protagonismo social está mais dividido. Aquela velha divisão entre assunto de homem e assunto de mulher está superada", afirma Soares.

Fato. Mas apesar de as emissoras encararem os antigos "programas femininos" hoje como atrações de entretenimento, os ingredientes seguem sendo basicamente os mesmos: notícias de celebridades, receitas, bate-papos. Cresceu o foco em informação, tornando mais evidente a participação do jornalismo, e mudou a forma como os assuntos tradicionais são tratados.

A transformação acontece na abordagem dos temas, não colocando apenas a mulher como destinatária. O público são as pessoas da casa, e não a figura da mulher com o avental.
Cristina Mungioli, professora da ECA-USP

É uma mudança recente que, no entanto, tem grande efeito.

Formato tradicional

Antes de seguir, é preciso voltar lá atrás, já que os programas femininos são quase tão antigos quanto a própria TV. O primeiro a se tornar diário foi o "Revista Feminina", da TV Tupi, em 1958.

Apresentado por Maria Teresa Gregori, o programa seguia a mesma lógica das revistas impressas, com quadros dedicados a temas como moda, saúde e artesanato. Deu tão certo que ficou na TV Tupi por 13 anos e ainda passou pela Bandeirantes e pela Gazeta depois.

Maria Teresa Gregori, que apresentou o "Revista Feminina" - Reprodução/Museu da TV - Reprodução/Museu da TV
Maria Teresa Gregori, que apresentou o "Revista Feminina"
Imagem: Reprodução/Museu da TV

Nesse formato, a apresentadora era como uma amiga: ela dava dicas e ensinava, o que era especialmente importante em um mercado que se transformava com a popularização dos eletrodomésticos.

"Era um modo de educar aquela população que estava em casa a comprar", explica Jullena Normando, coordenadora do curso de publicidade e propaganda da FASAM (Faculdade Sul-Americana). "A indústria precisava galgar novos consumidores, e fazia isso atrelado a valores da época: modernidade, cuidado com a família, capricho."

Naquela época, ainda havia a noção de que o lugar da mulher era dentro de casa —daí o foco desses programas nas atividades domésticas e o surgimento de figuras como Ofélia Anunciato, a primeira culinarista da TV.

O formato seguiu intacto por muito tempo, inspirando programas como o "Note e Anote" (Record), o "Mais Você" (Globo) e o "Mulheres" (Gazeta), que acabou de completar 40 anos no ar.

Fora do padrão?

De lá para cá, muita coisa mudou. O "TV Mulher" (Globo), que surgiu nos anos 1980 e era apresentado por Marília Gabriela, tinha um quadro para discutir direitos da mulher, bem como a presença de uma sexóloga, Marta Suplicy. Era muito inovador para a época (e provavelmente causaria escândalo hoje).

Ney Gonçalves Dias e Marília Gabriela no "TV Mulher" - Folhapress - Folhapress
Ney Gonçalves Dias e Marília Gabriela no "TV Mulher"
Imagem: Folhapress

O movimento feminista também cresceu. E, vale notar, é bem possível que o primeiro programa feminino da TV brasileira tenha dado um empurrãozinho nisso. Tratava-se do revolucionário "O Mundo É das Mulheres" (TV Paulista, 1955), que tinha Hebe Camargo e um time de mulheres entrevistando um convidado sempre homem.

"Ele tinha a obrigação de falar sobre as mulheres: atividades das mulheres, se ele achava que as mulheres eram competentes, que elas tinham a mesma capacidade que os homens. A gente brigava quando eles achavam que não", lembrou Hebe em uma entrevista antiga (abaixo).

Acho que ali começou o primeiro movimento feminista. Porque começavam a surgir assuntos, entrevistas reportagens a respeito do movimento feminista.
Hebe, sobre 'O Mundo É das Mulheres'

Mudança de perfil

O perfil da sociedade, com o passar dos anos, mudou. Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de 2018, as mulheres chefiam 45% dos lares brasileiros, contra 25% das que ocupavam esse posto em 1995. E essa transformação é sentida na audiência dos programas considerados femininos.

Cátia Fonseca conta que, já na época em que apresentou o "Note e Anote", entre 1999 e 2000, o público masculino era significativo. E ela acha que o rótulo do "programa feminino" também não cabe no "Melhor da Tarde", que apresenta agora na Band.

Eu não vejo mais o programa que eu faço como um programa feminino, vejo como um programa de entretenimento. Tem um público masculino, um público feminino, e um público de adolescentes. O que para gente é muito legal.
Cátia Fonseca

Jullena Normando fez uma descoberta interessante sobre o público ao estudar o "Mais Você" para seu mestrado, em 2009: boa parte dos espectadores do programa era de homens desempregados.

"A mulher estava trabalhando, estava inserida no mercado. E quem ficava em casa eram os desempregados, geralmente homens", explica ela, que notou um aumento das intervenções jornalísticas no programa e registrou que, em 40% das vezes, as tradicionais receitas de Ana Maria Braga foram cortadas.

A necessidade jornalística, cada vez mais importante, mexeu até com o tradicional "Mulheres", que teve sua duração reduzida para três horas por conta da pandemia.

Nosso desafio foi justamente não perder o DNA do programa, que é o bate-papo, o encontro, a descontração. Não nos desconectamos da realidade, mas continuamos deixando o programa com aquele gostoso que é a hora do encontro.
Regina Volpato

Regina Volpato apresenta o "Mulheres" na Gazeta - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Quebrando barreiras

A TV também viu muitos dos temas que tradicionalmente eram ligados aos programas femininos, como a culinária, extrapolarem barreiras de gênero e público. Muito disso, acredita Jullena, tem ligação com a culinária glamorosa que surgiu na TV a cabo e, mais recentemente, nos serviços sob demanda.

Lembra a febre que foi a Nigella Lawson e suas receitas de dar água na boca? É por aí.

A culinária era um nicho sem nenhum glamour, porque era voltada à dona de casa. E o papel da mulher era sempre desvalorizado. No entanto, quando chega essa culinária, a TV tem que se reposicionar. A culinária foi crescendo para um outro segmento, com mais status e glamour.
Jullena Normando

Foi nesse momento que surgiram os realities gastronômicos, como "MasterChef" (Band), "Bake Off Brasil" (SBT) e "Batalha dos Confeiteiros" (Record). E, claro, agora a TV mostra também homens cozinhando e sendo exaltados por isso (alô, Rodrigo Hilbert!).

Há óbvios interesses comerciais por trás de tudo isso. Até 2017, mais de 40 marcas já haviam passado pelo "MasterChef", por exemplo, segundo levantamento do Propmark. Mas a questão da transformação dos costumes também pesa.

"Talvez considerar que cuidado, saúde e alimentação sejam obrigações apenas das mulheres não seja mais tão relevante assim. É preciso adaptar os programas e conteúdos para a sua audiência", nota Jullena.

Astrid Fontelle, que desde 2013 está à frente do "Saia Justa" (GNT), acredita que há um movimento na TV de dialogar cada vez mais com públicos diversos, sem barreiras.

A TV aberta é obrigatoriamente plural. A TV segmentada tem no seu DNA falar com uma audiência direcionada, mas, de uns tempos para cá, queremos falar com gente! Gente que esteja interessada em ampliar seu conhecimento, em reavaliar opiniões. O sucesso do 'Saia' está nesse olhar e na entrega dessas possibilidades!