Como as novelas retratam o povo brasileiro?
Colaboração para Splash, em São Paulo
25/09/2020 04h00
Além de entreter, as novelas fazem um retrato do Brasil e do povo. É por isso que, nos últimos meses, milhões de brasileiros se emocionaram com Griselda (Lília Cabral), de "Fina Estampa", mulher forte que luta para criar os filhos; e riram com trejeitos exagerados do mordomo Crô (Marcelo Serrado).
Muita gente também vem suspirando com Eliza, a mocinha pobre e interiorana de Marina Ruy Barbosa em "Totalmente Demais", que se transforma em modelo de sucesso no Rio de Janeiro.
Há uma identificação com as histórias, com os comportamentos, com os sonhos.
Segundo a professora Maria Immacolata, coordenadora do Obitel (Observatório Ibero-Americano de Ficção Televisiva) e do Centro de Estudos de Telenovela da ECA/USP, em sete décadas de TV no Brasil, não há como negar: brasileiros amam novelas. E elas já se incorporaram à cultura e à identidade do país.
A telenovela no Brasil se tornou um dos elementos mais distintivos e aquele que, possivelmente, melhor caracteriza hoje uma narrativa da nação.
Da fantasia ao realismo
É assim desde 1968, quando estreou "Beto Rockfeller" na TV Tupi, um marco na teledramaturgia brasileira. Ao contrário das produções anteriores, que se inspiravam em dramalhões mexicanos e tramas fantasiosas, "Beto Rockfeller" falava do Brasil.
A história de Alberto (Luis Gustavo) era humana e real: um jovem pobre que trabalhava em uma loja de sapatos em São Paulo, mas que desejava ascender socialmente para ter uma vida diferente da dos seus pais. A identificação do público com o personagem foi imediata, e a novela, um sucesso.
Immacolata conta que ali teve início uma das principais características das telenovelas brasileiras: possuir uma trama central e vários núcleos com histórias que se entrelaçam.
Para o público dar conta dessa complexidade, os autores precisavam facilitar a leitura, construindo personagens a partir de tipos facilmente identificáveis: o vilão, o herói, a mocinha, o pobre, o rico.
Nessa busca por uma rápida identificação, o estereótipo, a padronização passou a ser chave desse processo.
Se a audiência não entender logo quem é aquele personagem, ela desiste. É um produto comercial, não dá para perder tempo explicando o caráter do personagem, ou sua função na história
Marcia Perencin Tondato, professora da ESPM e pesquisadora do grupo Comunicação e Consumo e Identidade Socioculturais.
Velhos clichês
Alguns tipos costumam ser bem brasileiros, mas recheados de clichês e reforço de preconceitos. É a baiana de fala preguiçosa em "Gabriela, Cravo e Canela", o mineiro cômico e rural em "Êta Mundo Bom", as supermães batalhadoras que dão conta da família sozinha de "Amor de Mãe".
Tem também a mulher negra que ora é a empregada doméstica ora faz papéis hipersexualizados, como em "Avenida Brasil", o gay sempre engraçado e de trejeitos exagerados como em "Insensato Coração", o homem negro criminoso em "I Love Paraisópolis".
O ator Babu Santana sabe bem como é representar esses estereótipos. Enquanto estava confinado na casa do "Big Brother Brasil 20", um post que mostrava a lista de papéis que o ator interpretou ao longo de sua carreira, disponível na Wikipedia, viralizou no Twitter.
Assaltante, bêbado, traficante de armas. Poucos têm nomes, mas quase todos são homens negros criminosos. Em "Viver a Vida", seu personagem era o Coisa Ruim. No cinema, viveu Tim Maia, mas na TV seu papel menos estigmatizado veio em uma produção protagonizada por negros: a série "Mr. Brau".
Isso se deve à nossa sociedade, que vê um bandido ou um policial como um cara alto, truculento, com cara de mau e negro. Há uma associação entre a violência e a imagem dos negros e de pessoas dos guetos. Mas não importa o papel que me derem, vão ver sempre o melhor que eu posso fazer.
Babu Santana
A repetição de padrões também acontece quando se fala de gênero e classe. É o que diz Veneza Ronsini, professora da Universidade Federal de Santa Maria, autora do livro "A Crença no Mérito e a Desigualdade: a Recepção da Telenovela do Horário Nobre".
A partir dos anos 1990, as novelas mostram mais núcleos de oposição: o estilo popular é representado como espontâneo em contraposição ao competitivo mundo das classes altas. O rude em contraposição ao elaborado, o emocional em contraposição ao civilizado, o corporal em contraposição ao intelectual.
"Os temas da pobreza, da desigualdade e da meritocracia ganham mais ênfase nas narrativas de novelas como 'Páginas da Vida', 'Paraíso Tropical', 'Duas Caras', 'A Favorita' e 'Caminho das Índias', mas elas não são questionadas. Há, na verdade, uma romantização da pobreza", explica Ronsini.
Isso provoca um sentimento ambíguo na telespectadora, em sua maioria das classes C e D. Ela quer se ver na história, mas se encanta com as peruas, que ascenderam pelo trabalho, ou com aquela mulher 'de berço'. Ela quer a realidade, mas também quer ver uma história que seja melhor do que sua vida.