'O ser humano se interessa pelo crime, pelo trágico', diz Valmir Salaro
Ao olhar para trás e analisar os mais de 40 anos no jornalismo, Valmir Salaro, repórter policial da TV Globo, lembra reportagens que marcaram sua carreira. Entre elas, a cobertura da morte da menina Isabella Nardoni, em 2008, que levou seu pai, Alexandre Nardoni, e sua madrasta, Anna Carolina Jatobá, para a cadeia.
"As pessoas consumiam informações do caso Nardoni como se aquilo fosse uma novela policial. E, na verdade, era uma grande tragédia familiar. O casal Nardoni virou o inimigo público do país todo. Eu estive frente a frente com eles e vi o desespero de duas pessoas acuadas", lembra ele, que entrevistou Alexandre e Anna Carolina para o "Fantástico". "Qualquer notícia sobre isso todo o mundo parava para ver."
Na celebração dos 70 anos de TV, Salaro lembrou de sua experiência em casos de chacina, violência policial e crimes misteriosos, além de contar sobre o dia a dia do repórter policial e de tantos plantões em portas de delegacia em busca de informações precisas.
Como a gente vive em um país que tem muito crime, o ser humano se interessa por ele, pelo lado sombrio, pelo trágico. Não sei se a gente nasce com isso, mas o crime chama muito a atenção. É como quando você está na estrada e vê um acidente. As pessoas param, reduzem a velocidade do carro para ver o que aconteceu. Desde que Caim matou Abel tem interesse pelo crime.
Para o professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) Vitor Blotta, o fascínio pelo jornalismo policial, que teve seu início, segundo ele, em meados dos anos 1970, é que "ele cumpre uma espécie de ritual da comunicação da ordem". "Quem são os bandidos, quem são os culpados, ao mesmo tempo em que o telespectador se coloca na posição de cidadão de bem."
Salaro afirmou que sempre tomou cuidado para não cair no sensacionalismo. "O repórter não pode ser estrela da notícia. A gente vê isso em vários programas de rádio e TV, jornalista tentando ser mais do que o fato que estão cobrindo."
Ele lembra que, quando começou a trabalhar, era comum que os jornalistas ficassem dentro da delegacia.
O repórter tinha vínculo com os policiais, dependia muito desse contato para desenvolver o trabalho. Na minha época, o jornalista policial era malvisto nas redações por causa dessa ligação com policiais. Eu vivi essa transformação.
Para o jornalista, o repórter policial não tem a atribuição apenas de escrever sobre o fato ocorrido, mas é dele o "papel de fiscalizar a ação da polícia". "O papel social do repórter é evitar que ela [polícia] extrapole, que mate e fique impune. Estar do lado da sociedade mais pobre, mais humilde, que sofre com abusos."
Ações policiais nas redes
Entre os jornalista de que Valmir Salaro se lembra com admiração estão nomes conhecidos do público, como Percival de Souza e Renato Lombardi, ambos atualmente na Record; além de Caco Barcellos, na TV Globo. Outros destacados por eles, seja pelo trabalho na TV ou na mídia impressa, foram Renato Campos, Fausto Macedo, Eduardo Faustini, José Louzeiro, Robson Cerântula, Josmar Jozino (colunista do UOL) e Alselmo Barbosa.
Mas o jornalista demonstra incômodo quando questionado a respeito de uma nova forma de registrar e divulgar o trabalho da polícia: policiais civis e militares que filmam ocorrências e postam na internet, atraindo milhares de seguidores e centenas de likes. "Não assisto", disse.
Quem também discorda de que as filmagens podem ser classificadas como conteúdo jornalístico é a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. "Jornalismo é outra coisa. Eles [os policiais] contam a vivência deles, nos aproximam do que é a adrenalina de uma perseguição ou de momentos marcantes da profissão. Quase como se estivéssemos numa observação. Mas o foco ali não é informar. É, sim, mostrar um determinado ponto de vista."
Samira ainda pontua que, as filmagens, muitas vezes, não são apenas para mostrar o dia a dia dos agentes, mas que eles consigam fama e notoriedade. Muitos, inclusive, acabam entrando na política e têm nas redes seu grande trunfo.
"Eu me preocupo bastante com isso. E não apenas pelo fato de eles filmarem o dia a dia. O problema é como isso tem sido instrumentalizado. No Brasil, nós não temos regras de quarentena para policiais quando resolvem ir para a política. O [Sergio] Moro, por exemplo, quando decidiu ser ministro teve que abandonar a magistratura. Para o policial, o custo é baixo. Ele se candidata e, se não for eleito, tudo volta a ser como antes."
O professor e pesquisador da USP Vitor Blotta pensa de forma semelhante. "Trata-se de um tipo de comunicação em relação a crimes que é feita por um agente público." Ele lembra que, caso a cobertura dessas ações fosse realizada por jornalistas, teria de seguir princípios editoriais, como ser imparcial e informativo.
O compromisso do jornalismo policial com esses princípios é o que garante que ele não coloque a vida de ninguém em risco. Ao longo dos anos, houve casos de abuso, como a divulgação de imagens de inocentes como culpados, ou mesmo culpados que, após serem expostos, acabaram mortos.
Um caso recente aconteceu no "Cidade Alerta", da Record. O programa identificou um homem acusado de um assassinato no interior de São Paulo e ele acabou sendo reconhecido na cidade e morto a tiros.
Após entrar em vigor a lei de abuso de autoridade, que não permite mais que rostos de pessoas suspeitas sejam mostradas, a intenção é que esse tipo de situação não se repita.
Tem que fazer valer os princípios éticos do jornalismo. Respeitar a presunção de inocência. Você não pode expor a pessoa acusada, o rosto dela, mesmo que não seja uma criança ou adolescente. Seguir normas de direitos humanos e direitos individuais. Fazer um jornalismo responsável.
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