O julgamento do filme 'Os 7 de Chicago', da Netflix, foi armado? Entenda
Se você ainda não viu, pare de perder tempo e assista logo a "Os 7 de Chicago". O filme da Netflix, já uma das apostas para o Oscar, recria o famoso julgamento de um grupo de ativistas contra a guerra do Vietnã que foram presos e acusados pelo governo americano de conspiração e incitação à violência nos anos 1960.
Além da aulinha básica de história, o longa do diretor Aaron Sorkin nos mostra como, muitas vezes, sobretudo em uma sociedade em estado de ebulição, um julgamento pode ser bastante injusto e contaminado por fatores externos. Do racismo estrutural a inclinações políticas de seus personagens.
Dito isso, aí vem a pergunta clássica: será que tudo ali realmente aconteceu daquele jeito, com consequências tão impactantes e requintes cinematográficos? Bem, a resposta é uma só: "mais ou menos". Entenda abaixo.
O julgamento durou meses como no filme?
Sim. O confronto de manifestantes e policiais de Chicago, no lado de fora da Convenção Nacional Democrata, aconteceu no fim de agosto de 1968. E o julgamento teve grande repercussão pública e durou quase cinco meses, de setembro de 1969 a fevereiro de 1970. A sentença, posteriormente revertida em apelação, saiu no dia 20 de fevereiro.
Os manifestantes marcharam contra policiais que estavam em uma colina, o que provocou um violento conflito?
Não. No filme, policiais cercam a estátua do General John Logan no topo de uma pequena colina, à espera do grupo que tinha 10 mil ativistas. Mas na verdade aconteceu o contrário. Antes de serem violentamente reprimidos, eles chegaram lá primeiro. Alguns subiram na estátua e agitaram bandeiras.
Os manifestantes, incluindo Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Jerry Rubin (Jeremy Strong), marcharam até a sede da polícia para tirar Tom Hayden (Eddie Redmayne) da prisão?
Sim. E eles foram recebidos por um batalhão de policiais armados em frente à delegacia. E Tom foi de fato libertado após pagamento de fiança.
Tom Hayden disse a frase "Se for para correr sangue que seja pela cidade toda" em um evento com manifestantes?
Sim. Nesse ponto, "Os Sete de Chicago" é bem fiel aos fatos. Aconteceu mesmo após o ativista Rennie Davis (Alex Sharp) ser agredido por policiais.
Os policiais realmente foram culpados pela violência do conflito, como o filme indica?
Sim. Segundo documentários, livros e reportagens sobre o episódio, policiais despreparados reagiram, de forma desproporcional e violenta, e sobrou até para jornalistas. Mas também é verdade —e isso filme não mostra— que militantes reagiram de forma forte, arremessando vidros, tijolos, pedras e vários outros tipos de objeto. Mais de 192 policiais ficaram feridos. E oito deles foram indiciados por violar direitos civis.
O juiz Hoffman mandou amordaçar o réu Bobby Seale (líder dos Panteras Negras) no tribunal?
Sim. O advogado de Bobby precisou passar por uma cirurgia, e o juiz ordenou que ele fosse representado pelo advogado dos outros sete réus. Mas Seale não aceitava um representante branco. Sem ter direito de adiar o julgamento e a representar a si mesmo, Bobby chamou o juiz de "fanático", "racista", "fascista" e "porco".
Um mês após o início do julgamento, Hoffman ordenou que os oficiais fizessem algo para impedir as interrupções. Eles decidiram amarrar Seale em uma cadeira e o amordaçaram. Para justificar a ação, o juiz se referiu a um precedente de um caso da Suprema Corte dos Estados Unidos. O episódio é narrado em detalhes no livro "Seize the Time", lançado por Bobby Seale em 1970.
Mas Seale foi absolvido do julgamento?
Sim, mas não aconteceu tão rápido como no filme. Depois de permanecer dias —não só um— amordaçado no tribunal, ele foi desamarrado e voltou a interromper o juiz. Isso levou o Hoffman a declarar a anulação da parte dele no julgamento, considerando o réu culpado por 16 atos de desacato. A sentença previu quatro anos de prisão.
Posteriormente, o Tribunal de Apelações dos EUA considerou inconstitucional a ação do juiz ao negar ao líder dos Panteras Negras o direito de ter um advogado escolhido por ele e de impedir que representasse a si mesmo no julgamento. As acusações de desacato foram retiradas e Seale foi absolvido.
Os ativistas Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen) e Tom Hayden (Eddie Redmayne) tinham mesmo problemas de relacionamento?
Sim. Eles também viviam às turras na vida real. Hayden era mais contido e contra a violência. Abbie Hoffman tinha uma personalidade mais intempestiva e, em alguns momentos, agressiva.
É verdade que Abbie Hoffman e Jerry Rubin usaram togas para provocar o juiz?
Sim. O juiz Julius Hoffman —não era parente de Abbie— ficou conhecido por defender a ordem e etiqueta. E os ativistas faziam de tudo para tirá-lo do sério. Eles realmente aparecerem no tribunal vestindo togas e, por baixo delas, usando uniforme policial. Também liam poesias e cantavam "Hare Krishna". Abbie se referia a Hoffman como "Julie" e dizia que a ideia de justiça "era a única obscenidade do local".
É verdade que o juiz impediu que júri ouvisse o depoimento do advogado Ramsey Clark (Michael Keaton), ex-procurador-geral dos EUA?
É. Mas, diferentemente do longa, ele não informou ao presidente Lyndon Johnson que a Divisão Criminal do governo havia chegado à conclusão de que o conflito foi causado pelos policiais. Ele respondeu a perguntas sobre discussões com autoridades municipais e sobre o planejamento da Convenção do Partido Democrata.
Dave Dellinger socou mesmo um oficial, frustrado com a atitude do juiz?
Não. Ninguém foi esmurrado no tribunal. A cena foi incluída apenas para manipular nossas emoções. E faz isso muito bem.
AVISO DE SPOILER: ATENÇÃO, NÃO LEIA O TRECHO ABAIXO CASO NÃO QUEIRA SABER O QUE ACONTECE NO FIM DO FILME.
A cena de encerramento, em que Tom Hayden diz em voz alta o nome dos soldados americanos mortos no Vietnã, é real?
Sim. Mas não foi ele quem leu. Foi Dave Dellinger (John Carroll Lynch). E aconteceu no início do julgamento, 15 de outubro de 1969, dia em que manifestações em todo o país pediram uma moratória para encerrar a guerra no Vietnã. E a leitura foi realizada antes de o juiz entrar na corte, não depois.
Afinal, o julgamento foi 'comprado' para favorecer o governo?
É fato que havia um forte clamor popular contra os manifestantes. Na época, pesquisas apontavam que 80% dos americanos desaprovavam as táticas usadas por eles, a quem atribuíam a causa do conflito. O calor das notícias pode ter influenciado o veredito do juiz Julius Hoffman.
Apesar de ser baseado em transcrições reais do julgamento, o roteiro assume uma postura claramente pró-manifestantes. E por isso é impossível dizer com 100% de certeza que a Justiça manipulou o processo com intuito de condená-los, como o filme indica. Até hoje, essa é uma questão controversa.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.