'Sei que sou preto desde sempre', diz ator - e militante - Rafael Zulu
Tal qual Jorge Ben Jor, o ator Rafael Zulu repete, quase como um mantra: "o povo negro é lindo". Hoje um dos destaques da teledramaturgia brasileira, com participações em novelas como "Totalmente Demais", "Ti Ti Ti" e "Fina Estampa", ele diz tentar desconstruir o estereótipo do galã negro e diz que vê beleza nos homens e mulheres negras além dos padrões.
Eu sei que sou preto desde sempre. Porque temos alguns amigos desavisados, né?! A televisão me colocou na prateleira do ator negro, galã, e aí eles querem segmentar mais. Eu acho o negro bonito, independente de qualquer coisa. Sei que sou preto desde sempre, mas essa consciência racial eu tenho há uns sete anos. Venho me dando conta da importância do meu discurso, de ser referência.
Zulu explica que nos últimos anos vem estudando mais e discutindo sobre raça com os amigos mais próximos.
Ele se diz um militante negro presente no front e na retaguarda.
Acho que militância é algo amplo. Existe a coisa da linha de frente, da pedrada, e existe a retaguarda, a negociação. Eu me vejo nesses dois lugares. Então, quando alguém fala 'o fulano é muito radical', eu digo que é preciso ter o radical também. Para alguns amigos brancos, sou uma espécie de catequista, que também dialoga com afeto. Um dia acharam normal colocar alguém num tronco e dar chicotada. Hoje, isso é inadmissível. Por isso é normal algumas pessoas não entenderem nossas questões, então a gente precisa desse diálogo também.
Nascido em Padre Miguel e criado em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, a história de vida de Rafael Gervásio dos Santos, 38, se encontra com a história de muitos negros e negras do Brasil. Filho da dona Regina e do Seu Antônio, ele teve uma infância carente de recursos financeiros, mas com amor de sobra.
Por sugestão da mãe, Rafael foi estudar. Formado em Engenharia de Telecomunicações, ele conseguiu um trabalho na área, engatou uma pós-graduação em marketing, mas a arte começou a falar mais alto.
A arte, de modo geral, ela nasce com a pessoa. Eu me formo, começo a pós, e penso: quer saber, vou estudar teatro com o dinheiro que eu ganhava. Eu comecei a entrar em cartaz, recebo uma proposta para ir morar no sul por conta do teatro. Nisso, eu chego para os meus pais e falo que quero viver do meu sonho e, caso alguma coisa dê errado, eu já tenho uma profissão. Meus pais me deram todo o suporte e eu fui. Conto essa história 15 anos depois e não precisei voltar a fazer o que fazia. Sem a arte, e todas as suas ramificações, eu não seria feliz.
Primeiro, seu nome artístico era Rafael Mendes (uma homenagem a sua avó materna). O Zulu foi dado pela atriz e amiga Josie Pessôa. O primeiro trabalho de Rafael Zulu na TV foi a novela "Prova de Amor", da Record, em 2005. Dois anos depois, o ator fez sua primeira novela na TV Globo, "Sete Pecados".
Fazer novela na principal emissora de TV do país muda a vida de uma pessoa, segundo Zulu, mas é preciso manter os pés no chão. Ele conta que é fã do trabalho da Globo, mas critica uma omissão da empresa no debate racial sobre os personagens que são retratados nas novelas.
Eu acho a TV Globo uma empresa incrível, eu sou muito grato e acho que ela tem feito um dever de casa muito legal. Durante muito tempo, ela foi omissa, principalmente na teledramaturgia. Ela não assumia, não aceitava a gente enquanto bons personagens dando boas histórias para pessoas pretas. Atualmente, ela vem numa manobra de retratação. Eu sou um cara muito fã do produto que ela faz.
Como parte do estereótipo do "negro galã" estão os músculos bem definidos, além da barba e cabelo cortados. Por um tempo, Zulu acreditou que esses eram os ingredientes da receita para beleza. Hoje, ele diz que não é bem assim.
Eu tento desconstruir esse estereótipo. Um dia falaram para mim: nossa, você fica tão mais bonito com a barba feita. Agora eu digo que me gosto tanto de barba, acho que fico tão interessante com ou sem ela. Eu estar de barba é uma questão profissional, mas também é um punho cerrado, uma bandeira. Meu cabelo, meu nariz, meus traços são a prova do que eu sou, e vou assumir isso. Eu já precisei tirar o dread para uma novela porque o grupo de discussão achou que eu não ficava bonito com ele. Sabe quando eu faria isso de novo? Nunca!
A cicatriz do racismo e discussões no grupo 'Diretoria'
Mesmo sabendo ser negro desde sempre, o ator diz que sofria com uma espécie de racismo velado na infância. Hoje namorando com a personal Aline Becker, Rafael conta que sofreu as primeiras ofensas racistas ao 14 anos, da mãe de uma paquera.
"Essa paquera não tinha beijo, nem nada, era só papo. Eu saia da escola e ia até a porta da casa dela. A mãe, incomodada com a situação, disse 'já era para você ter entrado' e perguntou 'com quem você está aí?'. Nisso, ela foi para janela ver quem era e, quando me viu, já gritou: 'Sai da porta, o que você está fazendo aí com esse neguinho, esse macaco, crioulo'".
Era a primeira vez que eu passava por aquilo. Eu cresci num lugar com pessoas brancas, mas na favela é todo mundo próximo. De repente, estou num lugar que uma pessoa me chama de preto, macaco? Fui para casa andando, isso eu estou falando de duas horas de caminhada. Chego em casa, converso com a minha mãe e ela me diz: 'Você nunca mais vai ouvir isso que você ouviu e ficar calado'. Ali me dei conta que jamais levaria esse tipo de desaforo para casa. Te falo que se se alguém vier atravessado comigo agora, o pau come.
Zulu é pai de Luiza,13. Ele diz que é um desafio ser pai de uma jovem negra nos tempos de hoje.
A relação com a minha filha é bonita de ver. É um desafio muito grande porque sou oriundo de uma geração machista e todo dia me policio para não escorregar nessas questões. Mas estou super topando desse desafio. Eu amo sentar com a minha filha e falar sobre tudo, sobre o que ela deve querer. Eu falo para Luiza olhar como o pai dela, os tios e os avôs a tratam e não aceitar nada menos que isso, porque ela já entendeu o que é uma relação não abusiva, e ela não pode aceitar nada menos que isso, seja um homem ou uma mulher
O ator tem um 'currículo' de amigos extenso. Eles variam entre o círculo das artes, passando pelo futebol, música e grandes empresários. Algumas vezes, Zulu é confundido como um dos 'parças' do jogador Neymar. Ele esclarece que não é bem assim, que na verdade ele faz parte de um outro círculo.
Zulu e Neymar integram o grupo de WhatsApp "Diretoria", que conta também com o jogador de vôlei Bruninho, o cantor Thiaguinho, o surfista Gabriel Medina e o apresentador de TV Luciano Huck. Ele diz não se incomodar confusão e que também é amigo dos "parças" do Neymar - que, na verdade, são os amigos de infância do jogador. O ator explica que, na "Diretoria", também há espaço para o debate sobre raça.
"Existe essa confusão e não tem problema nenhum. Nós, da 'Diretoria', somos uma galera mais velha, que não acompanha o Neymar no dia a dia. Na verdade, somos todos amigos".
Nós debatemos sobre tudo, inclusive racismo. O Luciano [Huck] é super interessado, o Bruninho também. O Medina é o surfista, todo zen, mas também trouxemos ele para dentro desse debate. O Neymar, recentemente, passou por um episódio de racismo e debatemos isso com ele. É um grupo muito legal, como qualquer outro grupo de amigos, a gente fala besteira, mas, ao mesmo tempo, discutimos sobre as coisas sérias do mundo.
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