Carioca Irado da Enchente continua revoltado com o Rio, mas pede desculpas
De Splash, em São Paulo
19/11/2020 13h22
Todo quiz "quão carioca você é?" que se preze deve ter a questão "ficou preso em alagamento na Praça da Bandeira?". Era só chover mais forte para a tal praça, importante ponto de ligação entre a zona sul e a zona norte do Rio de Janeiro, alagar, causando um nó no trânsito.
E há 10 anos, num desses temporais, um motorista revoltado desabafou contundentemente contra políticos (o então governador do Rio, Sérgio Cabral Filho, foi comparado à Tartaruga Touché), contra Tom Jobim e a bossa nova e sobrou até para Britney Spears ("foda-se se ela está grávida de um cavalo"!).
Ele ficou conhecido como o "Carioca Irado" (e também pelas variações "Revoltado" e "Puto"). O vídeo circulou nas redes sociais, e a cada temporal no Rio seus conterrâneos o evocam, cantarolando "Ipanema é tão legal/O meu pai é general", a paródia de "Samba do Avião" feita pelo tal cidadão enfezado.
Enquanto carioca que já ficou alagada na Praça da Bandeira, esta jornalista que vos escreve entende a dor daquele homem —que, sim, se excede em alguns momentos— e tentava, sem sucesso, encontrá-lo. Uns diziam que era taxista, outros que era professor universitário e que teria morrido de câncer.
Até 'fanfic' sobre a orientação política dele apareceu. Tudo lenda urbana.
Pois foi justamente no domingo passado, durante o primeiro turno das eleições municipais no Rio de Janeiro, que o Carioca Irado foi reencontrado. Um vídeo dele, de máscara e tudo, apoiando um candidato a vereador pelo PSOL (que ele fala "pí-sol", tá?) viralizou e fez muita gente pensar:
O 'meu' Carioca Irado tá vivo!
Splash foi atrás de Guilherme Meirelles, que nos atendeu com ânimos acalmados e aquela carioquice infalível. Na madrugada de 6 de abril de 2010, o economista (e não taxista ou professor) acabou sendo entrevistado por documentaristas que faziam rafting pelas ruas da zona norte e filmavam o toró.
Sim, foi isso que você leu. O Rio de Janeiro não é para amadores.
Dois cariocas pegaram um bote inflável e navegaram pelas águas pluviais da cidade entrevistando os motoristas ilhados.
Na época, Guilherme, que tinha 39 anos, era funcionário da Petrobras Distribuidora e tentava voltar para casa depois do expediente. Com a repercussão do vídeo, tomou uma "chamada" na firma. No nosso papo, sem nenhum rastro do desprezo à imprensa que demonstrou na gravação, esclareceu alguns pontos.
Daquela tarde ensolarada, ele se arrepende por não ter dado ouvidos à sabedoria ancestral de um colega maranhense de ascendência indígena, que aproveitou o esquema de banco de horas para ir embora mais cedo.
Ele disse: 'Vem chuva forte aí! Olha o céu!'. E era um céu azul celeste, com belas nuvens brancas, como a bandeira do Uruguai ou da Argentina. Ao final da tarde, a 'Hard Rain' caiu —referência à canção de Bob Dylan, 'A Hard Rain's a Gonna Fall'.
Mas não foi por ser fã de Dylan que ele 'atacou' Britney Spears.
Esse é mais um dos arrependimentos de Guilherme. E aí é melhor você ouvir o próprio falando.
Sim, Guilherme está por dentro das tretas familiares da cantora pop, e continua:
Eu adoro a Britney Spears. A crítica era direcionada à cultura das celebridades em detrimento da discussão do contexto da nossa cidade. Aquele foi um momento de raiva.
Guilherme também não curte ter comparado Sérgio Cabral Filho à Tartaruga Touché, personagem dos desenhos da Hannah Barbera, sucesso na década de 1960.
Essa daqui, ó.
Eu renego essa frase. Detesto o Sérgio Cabral Filho por ele ser corrupto, não é porque ele tem cara de tartaruga. Uma pessoa não deve ser julgada pela aparência. Não foi legal falar de uma característica física do cara de modo pejorativo.
Ainda sobre Cabral, Guilherme —que é virginiano, a quem interessar possa— diz não ter comemorado a prisão do ex-governador carioca.
Fiquei triste de ver essa gente tendo todo esse poder, mas foi importante porque ele estava sendo apontado como candidato à Presidência da República em 2014.
Guilherme contou ainda que é chamado de homofóbico pelos adjetivos que usou no vídeo para se referir a Tom Jobim, a quem classificou como uma "bicha enrustida".
Eu estava sob estresse, preso no carro. Na minha geração havia a santíssima trindade do xingamento: 'filho da puta', 'corno', 'viado'. Carioca usa muito. Mas não tenho preconceito, escuto Cazuza, vi show da Legião Urbana, gosto do Freddie Mercury. O que importa é a arte.
Na hora da raiva, sobrou até para o cineasta João Moreira Salles, a quem Guilherme pede "mil perdões" por ter chamado de "alienado".
O Guilherme Meirelles cinéfilo é fã de 'Santiago', um documentário introspectivo. João Moreira Salles ainda fez 'Notícias de uma Guerra Particular', foi um equívoco tratá-lo como alienado.
Para o Guilherme atual, de 49 anos, a "coroa" de alienado é do novelista Manoel Carlos. "E ninguém tasca".
Os cariocas vividos por atores com sobrenomes Gianecchini, Fischer e Dieckmann... Pré-requisito para viver um 'típico carioca' na novela das nove: não parecer um 'típico carioca'. Nada contra descendentes de italianos, por favor, só questiono o padrão de beleza eurocêntrico do Projac.
E o carro, que estava com o IPVA em dia, e encheu de "água da chuva misturada à água de esgoto"?
O carro, um Gol "bolinha" comprado pelo pai dele em 1997, mais que apenas um meio de transporte, tinha valor sentimental —e resiste até hoje, ainda sob a posse de Guilherme.
Meu pai morreu em 2003, e eu não tinha carteira de motorista. Por dois anos, o Gol ficou parado na garagem. Os funcionários do condomínio cuidavam bem dele, limpavam.
Guilherme até falou mais sobre isso em seu recém-lançado canal no YouTube.
Uma das poucas coisas que não mudaram nessa década que se passou foi a relação de Guilherme com o Rio.
Fico tão louco com o Rio que às vezes tenho vontade de me mudar para São Paulo ou de buscar a paz em Maceió, atrás de 'um dia quente, um bom lugar para ler um livro', porque lá não tem como ser 'um dia frio'. Mas aqui estão as minhas raízes, fico na esperança de solucionarem esse caos.