Políticos voltam a se aliar ao entretenimento e geram debate: isso é certo?
Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela D'Ávila (PCdoB) disputam voto a voto as prefeituras de São Paulo e Porto Alegre, respectivamente, com uma estratégia em comum: tentar conquistar o jovem na internet.
Para isso, se aliaram ao youtuber Felipe Neto (mais de 40 milhões de inscritos) em lives do jogo "Among Us", no YouTube, que atraíram milhões de espectadores e tiveram pedidos de votos para os dois. Quem não gostou foi o MBL (Movimento Brasil Livre), que fez mais um de seus memes para ironizar a iniciativa de esquerda.
Entretenimento e política podem se misturar?
Enquanto o MBL apontou suposta hipocrisia de Felipe, o youtuber rebateu que o grupo estaria irritado porque ele teria exposto "a estratégia de transformar política em entretenimento". Ele disse: "A diferença é que eu faço entretenimento, não sou político. Vocês são palhaços investindo no jovem, achando que irão chegar à presidência".
Kim Kataguiri, deputado federal (DEM-SP) e líder do MBL, voltou a ironizar e disse que Felipe Neto não "expôs" qualquer estratégia secreta, já que o grupo assume sua ligação com os memes —as redes sociais do Movimento Brasil Livre deixam isso muito claro.
A política de entretenimento tem outros grandes nomes, como Luciano Huck: embora não tenha confirmado sua intenção de se candidatar à presidência em 2022, o astro da TV Globo se envolve cada vez mais com declarações políticas e até críticas ao governo Bolsonaro.
E aí, existe certo e errado nesta história?
É o que Splash tenta responder com a ajuda de estudiosos da política, do marketing e até dos games. As opiniões estão destacadas abaixo, mas a gente já deixa um spoiler: o simples fato de políticos dos dois lados investirem no entretenimento não é problema.
Política é processo de representação social, e isso inclui aspectos culturais. Não tem como a gente dissociar política de entretenimento, o entretenimento do momento vai estar presente no ambiente político com certeza. As redes sociais são fenômenos culturais, os jogos eletrônicos também e estão presentes no ambiente político. Isso que foi feito com Boulos e Manuela é natural do ambiente político. - Kleber Carrilho, cientista político e professor de Marketing Político e Estratégias Eleitorais da Escola de Comunicação e Artes da USP
Uma análise parecida foi feita por Luiz Alberto de Farias, livre-docente em Opinião Pública e professor da USP (Universidade de São Paulo) e da Universidade Metodista. Ele explicou o que Boulos, Manuela e até o MBL têm a ganhar com este tipo de estratégia.
Uma live como a realizada entre Felipe Neto, Boulos e D'Ávila empresta aos políticos jovialidade, traz um lado humano, acessível e espontâneo não claramente percebido na classe política. (...) Movimentos de cooptação de jovens têm sido feitos por grupos orquestrados como MBL, assim como há influência forte de programas voltados ao humor-escracho, em que falas ácidas e discursos lacradores ganham simpatia, popularidade e chegam a eleger representantes. - Luiz Alberto de Farias, livre-docente em Opinião Pública e professor da USP e da Metodista
É coisa da modernidade, certo? Errado!
Tanto Luiz Alberto de Farias, quanto Kleber Carrilho pontuaram que a união entre política e entretenimento não é novidade e já acompanha a sociedade desde a Idade Média.
Kleber disse:
Todo ambiente político está associado à cultura do tempo: houve a importância da música em determinadas circunstâncias, com o papel dos showmícios. Na Idade Média, o ambiente político estava extremamente ligado à pintura, à escultura. Se você olhar para os grandes clássicos da cultura musical, como Beethoven, Mozart e Richard Wagner, sempre há uma associação à política. Cultura e política se aproximam em todos os tempos.
E Luiz completou:
Política e entretenimento sempre andaram misturados, desde, pelo menos, os tempos de Luis XIV, que era frequentemente associado a personalidades e a ações culturais. Hoje as estratégias vão se redesenhando, ganhando escala, mas continuam a buscar colar a imagem dos políticos às das personalidades.
Ou seja, o fato de que agora vemos políticos fazendo memes e jogando "Among Us" é só uma característica do nosso tempo. O entretenimento se modernizou e mudou de cara, e não é problemático que a política se adapte à atualidade (desde que a política não se resuma apenas aos games e aos memes, é claro).
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido), por exemplo, se tornou conhecido nacionalmente graças ao "CQC" e às "mitadas", que logo ganharam espaço nas redes sociais. Segundo Kleber, o que vemos em 2020 é o resultado do aprendizado da esquerda em relação à internet:
Algumas campanhas à esquerda, este ano, se destacaram muito bem: observaram o sucesso que foi a campanha do presidente Jair Bolsonaro em 2018, as tendências culturais de entretenimento e de mídia. É natural, nada disso sai do que é lógico em política.
Mas existe um limite?
Para eles, fica claro que o limite é o bom senso e o respeito. O próprio presidente da República foi citado como exemplo negativo: de acordo com Luiz Alberto de Farias, Bolsonaro construiu seu sucesso midiático com "discursos tolos e agressivos".
Assim como o discurso tem de se ajustar ao político, a estratégia deve conversar com ele, também. O exemplo de Bolsonaro como convidado de programas de humor como 'CQC' e 'Pânico', atuando como um personagem dos próprios programas com discursos tolos e agressivos, não poderia ser repetido facilmente por outros políticos. A caricatura se encaixava a ele e foi muito bem utilizada para criar popularidade.
E por que o "Among Us"?
O jogo do momento entre as crianças, adolescentes e jovens adultos parece ter tudo a ver com política, e o fenômeno não é só brasileiro. Nos Estados Unidos, a parlamentar democrata Alexandria Ocasio-Cortez (mais conhecida como AOC) foi responsável por uma das lives mais vistas da história da Twitch... jogando "Among Us".
Existem algumas possíveis ligações entre o game e a política. O objetivo central do jogo é descobrir quais jogadores são os "impostores" da nave; ou seja, quando um político cai no papel de impostor, ele precisa mentir bem para convencer os outros de sua inocência.
Gilson Schwartz é economista, sociólogo, estudioso dos games, desenvolvedor do jogo "Purposyum" (criado com apoio da ONU) e membro da rede "Games For Change".
Com este currículo, ele tentou explicar o apelo que "Among Us" tem entre os jovens:
O arquétipo do traidor, o trickster [trapaceiro], o coringa e tantas outras manifestações desde o folclore até a tragédia grega são histórias interessantes onde há uma jogada, o truque, a virada no roteiro. Tudo isso é conhecido, mas o digital e a chamada 'gamificação' trazem esses arquétipos para o público teen. Mas essa novidade coloca o gamer contemporâneo no mesmo lugar de fala: ele escuta o que já era colocado para os jovens gregos em seus anfiteatros, comédias e tragédias.
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