Literatura erótica perde a vergonha e se consagra como gênero no Brasil
É o que diz Juliana Dantas, uma das autoras de romances eróticos mais populares do país. Dos seus 32 livros, a maioria autopublicado, sete chegaram ao primeiro lugar dos e-books mais vendidos da Amazon entre todos os gêneros. Em 2019, seu livro "No Silêncio do Mar" saiu pela gigante Harper Collins.
Não que isso seja o maior selo de reconhecimento da carreira de Juliana: com 80 milhões de páginas lidas no Kindle Unlimited, o selo da publicação tradicional não parece mais tão impressionante para quem estava acostumada a fazer tudo sozinha.
Juliana Dantas
A autora afirma que nunca havia se imaginado vivendo de livros.
"Em 2016 publiquei meu primeiro livro. Em dois dias estava em primeiro na lista de livros eróticos e em dez dias ganhei o dobro do meu salário numa editora. Quando meu terceiro livro chegou em primeiro na lista geral, pedi demissão."
Jéssica Macedo, de 24 anos, só em 2019 publicou 15 títulos eróticos, dois deles em primeiro lugar na lista de mais vendidos. Ela sempre sonhou alto:
Jéssica Macedo
A desilusão não durou muito. Hoje, ela tem 40 milhões de páginas lidas e uma rotina de 6 a 8 horas de escrita por dia.
Mas o maior fenômeno do gênero do Brasil é Nana Pavoulih, 46. Ela acumula 100 mil e-books vendidos e 90 mil cópias físicas. Já publicou por grandes editoras como Rocco e Planeta, tem contrato com a plataforma de audiobooks Storytel e vendeu direitos de suas obras para o cinema e para a TV Globo.
Seu faturamento dos últimos 5 anos foi de quase R$ 2 milhões.
Nana Pauvolih
Produção em série
"Chego a escrever um livro em 15 dias", explica a prolífica autora Jéssica Macedo, que bate perto do meio milhão de reais em ganhos.
Para muitos, a história começa em 2011, quando uma fanfic do livro "Crepúsculo" chega ao Brasil. O best-seller mundial é "50 Tons de Cinza", de E. L. James. "Quando descobri que seria publicado pela Intrínseca, eu fiquei: será que a editora sabe do que é esse livro?", fala Juliana, rindo.
Na livraria onde trabalhava, por ser a única a ter interesse na área, acabou sendo referência.
"Lá dentro, a estante do gênero era chamada de estante das tiazinhas safadas, superpejorativo. Isso foi até mandado em e-mail corporativo, a gerente ficou brava, não achou legal".
As histórias sobre o tempo em que Juliana Dantas foi livreira são muitas: teve a vez em que um pai foi comprar o livro para a filha de nove anos; tinham as pessoas devolvendo o exemplar, horrorizadas porque tinha muito sexo; muita gente que ia comprar e não sabia do que se tratava.
Juliana Dantas
Danielle Machado, editora executiva da Intrínseca, concorda que romances eróticos não são o foco da editora:
"Fazer apostas e não ter preconceitos é parte do nosso DNA, E '50 Tons de Cinza' aconteceu assim. Vimos uma grande oportunidade e foi um livro que quebrou paradigmas, derrubou barreiras".
Os holofotes e a conversa podem ser relativamente recentes, mas esse tipo de literatura não. Consagrada como romances de bancas de jornais, a literatura erótica aparece na cultura popular já nos anos 1990. Em um episódio de "Friends", Joey encontra um livro de Rachel: "é um livro de sacanagem!".
Controvérsias sobre romances eróticos também não são novidade. "Ulysses", de James Joyce, parou na corte dos EUA por conter obscenidade. "Trópico de Câncer", de Henry Miller, foi proibido por lá, no Reino Unido e no Canadá. Quando uma cópia chegou em NY em 1940, o responsável ficou preso por 3 anos
Jéssica Macedo
Em 1782, era publicado na França "As Ligações Perigosas", de Pierre Choderlos de Laclos, um dos primeiros romances eróticos que se tem notícia. O filme "Segundas intenções", de 1999, é uma adaptação do romance francês, aliás.
"'50 Tons de Cinza' fez o romance erótico virar mainstream, antes só era encontrado em bancas. Eu lia desde os 12 e achava que era uma subcategoria. Quando fiz produção editorial, já tinha lido clássicos, lia os livros da faculdade. Ainda gostava de romance, mas tinha muita vergonha", diz Juliana.
Para Taize Odelli, produtora de conteúdo especializada no mercado editorial, com passagem pela Companhia das Letras, o fato de serem livros eróticos lidos e voltados para mulheres aumenta o preconceito:
Taize Odelli
Jéssica Macedo concorda.
Toda a literatura de entretenimento sofre preconceito. Eu me formei em Cinema pela UFMG e via a mesma coisa. Lembro que falava para o meu professor que queria fazer filme de shopping, agradar o público.
Para driblar esse preconceito, instituições literárias resolveram criar categorias especificamente para literatura de entretenimento. Foi o caso do lançamento do clube Inéditos da TAG Livros e da nova categoria do Prêmio Jabuti.
Enquanto algumas autoras como Juliana consideram que essas ações demonstram que o romance erótico está sendo aceito pelo mercado tradicional, outras autoras discordam.
Prêmios de consolação
"Acho que é uma tentativa de inclusão, mas que representa o preconceito. Porque se não houvesse esse elitismo, não haveria necessidade dessas categorias", fala Cinthia Basso, 26, que acumula mais de 30 milhões de páginas lidas na Amazon.
"Essas iniciativas colocam o romance erótico e de entretenimento como uma subcategoria, uma coisa à parte", diz Nana. "Você sabia que não entram livros eróticos no ranking geral da Amazon? Pode entrar livro de assassinato, serial killer, mas erotismo não."
As críticas, porém, vão além de discussões subjetivas sobre o que é ou não é literatura de qualidade. Explorando questões como virgindade, homens dominadores e situações que podem beirar o abuso, muito se comenta também sobre o possível machismo em replicar esse tipo de dinâmica.
"Acho que toda a reflexão sobre feminismo e machismo é válida. Através da reflexão entendemos o que estamos lendo e o nosso entorno", diz Danielle. "Acho que também precisa se levar em conta que a literatura erótica desperta discussões sobre o prazer feminino, e essa é a função da arte."
"Diz-se muito que a indústria pornográfica, por exemplo, é uma visão do homem sobre o sexo, uma visão fabricada, longe da realidade, que pode ser danosa. O romance erótico voltado para mulheres pode ter esses mesmos problemas", diz Taize. E ela continua:
"São críticas válidas, que mostram que por trás do prazer que o livro se propõe a narrar há problemas que precisam ser discutidos. A questão é como são discutidos. Precisamos de mais autores e mais livros com narrativas diferentes, com vozes diversas para mostrar outras formas de sexo e de relação".
A visão elitizada e idealizada do livro como obra de arte muitas vezes ignora de que se trata, também, de um produto. Aliás, toda arte: a obra mais cara do mundo, uma pintura de Leonardo da Vinci, foi leiloada por US$ 450 milhões.
"Quando trabalhava em agência de publicidade, precisava pensar no mercado, no público-alvo. Trouxe isso para a literatura", diz Jéssica. "Temas como a mocinha virgem, máfia, bebês e um homem que muda a vida pela mulher estão em alta. As leitoras querem encontrar um relacionamento idealizado".
Para Taize, faz sentido. "Vamos ser honestos: histórias como '50 Tons de Cinza' falam muito mais com o público geral do que um clássico da literatura. Justamente porque não se colocam como algo fora do alcance do consumo desse público geral."
Em um grupo fechado apenas de leitoras de romance erótico, as estatísticas impressionam. Apenas no primeiro semestre de 2020, há pessoas que leram de 46 a 109 livros. Em uma pesquisa feita em 2017 com leitores fora dessa comunidade, a média de leitura anual foi de 7 livros, o que é 22 vezes menor.
Uma das explicações para isso pode ser a facilidade e fluidez da leitura, mas a excitação é um fator que não pode ser ignorado. "Abordamos a aceitação da mulher com seu corpo e sua sexualidade, o que choca, a princípio, quem nunca leu nada do tipo, mas depois liberta", diz Cinthia.
Nana Pauvolih
No fim, faz todo sentido. O que essas autoras escrevem é exatamente o que o público quer. E isso Jéssica traduz em uma só frase:
Jéssica Macedo
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