'Uma Noite em Miami': Regina King celebra o homem negro em encontro estelar
Colaboração para Splash, de Los Angeles
17/01/2021 04h00
Cassius Clay, ou Muhammad Ali, o maior pugilista da história. Malcolm X, um dos grandes líderes da luta antirracista. Sam Cooke, o rei do soul. Jim Brown, um dos grandes do futebol americano. Eles eram jovens, famosos, poderosos. Uma espécie de Vingadores da cultura e da política afro-americanas.
Os quatro amigos festejaram juntos o primeiro título mundial dos pesos-pesados de Cassius Clay, que pouco depois se juntaria à Nação do Islã e adotaria o nome Muhammad Ali. Era a noite de 25 de fevereiro de 1964, e eles estavam num modesto quarto de hotel numa Flórida ainda segregada.
Ninguém sabe de fato como foi essa comemoração —há uma imagem de Malcolm X fotografando Ali num bar. Mas o dramaturgo e roteirista Kemp Powers (que acaba de lançar "Soul") resolveu imaginar. O resultado pode ser visto no filme "Uma Noite em Miami", no Amazon Prime Video, cotadíssimo para o Oscar.
É a estreia na direção de longas da atriz Regina King, vencedora do Emmy por "Watchmen" e do Oscar por "Se a Rua Beale Falasse". Ela procurava uma história de amor e acabou com essa história de amizade entre quatro homens negros e famosos que discutem como lidar com o racismo e alcançar a equidade.
Eli Goree, que faz Cassius Clay
Muhammad Ali ficou conhecido por não ter medo de dizer o que pensava, mas, entre amigos, entre quatro paredes, mostra inseguranças, principalmente em relação à sua entrada na Nação do Islã, a organização da qual Malcolm X (vivido por Kingsley Ben-Adir) fazia parte na época.
Ben-Adir contou a Splash que a palavra que não saía de sua cabeça era "vulnerabilidade".
Malcolm X, visto como um líder mais radical em comparação a Martin Luther King, aqui se sente ameaçado na organização e com medo da violência contra sua família —ele seria assassinado menos de um ano depois.
Kingsley Ben-Adir
Na verdade, seu amigo Dick Gregory o descrevia como um homem doce, decente, que tinha uma persona pública para lutar contra a injustiça racial. E que nesta época se sentia fraco e oco, sem que ninguém entendesse o tormento por que passava.
Kingsley Ben-Adir
Na noite ficcionalizada por Kemp Powers e Regina King, há várias discussões, sendo a maior delas aquela entre Malcolm X e Sam Cooke (Leslie Odom Jr., o Aaron Burr de "Hamilton"), que fazia músicas românticas tentando agradar aos brancos, mas controlando a produção e ganhando dinheiro com isso.
Malcolm X pressiona o amigo a se dedicar a dar voz ao sofrimento de seu povo —o que Cooke, assassinado não muito tempo depois num crime ainda nebuloso, fez, com seu clássico "A Change is Gonna Come", cuja história foi um pouco modificada para efeitos dramáticos.
Não importa. Afinal, trata-se de uma obra de ficção.
Mas os debates dos quatro sobre seus papéis no mundo e sobre como ser bem-sucedido num mundo branco, lutando por oportunidades e direitos iguais, poderiam acontecer hoje. Os atores, mesmo 50 anos mais tarde, entendem isso muito bem.
Aldis Hodge, que faz Jim Brown
Aldis Hodge, o Jim Brown, tomou como missão escolher projetos que tenham relevância pessoal ou uma mensagem importante. E hoje procura dar oportunidade a outros parecidos com ele.
Como Clay, Brown, Cooke e Malcolm X sabiam, a união realmente faz a força.
Leslie Odom Jr. é prova disso. Antes de Lin-Manuel Miranda escalar apenas atores negros, latinos, asiáticos e de outras minorias para fazer o megasucesso "Hamilton", sua experiência tinha sido "nas margens", como diz. Raramente corpos não-brancos estão no centro da narrativa.
Leslie Odom Jr.
"Hamilton" foi a evidência que faltava de que sua suspeita de ter condições e talento de estar "na sala onde as coisas acontecem" estava certa, para ele e para tantos outros revelados pelo musical.
E essa confiança foi fundamental para que pudesse encarar sem medo viver um de seus ídolos, Sam Cooke. E inclusive cantar seu hino, "A Change Is Gonna Come", numa interpretação emocionante. Odom Jr. também compôs para a trilha sonora a canção original "Speak Now", em parceria com Sam Ashworth.
É mais uma chance de concorrer ao Oscar. Se ele ganhar alguma estatueta, elas se juntarão a um Grammy e um Tony. E qualquer vitória do filme é mais um passo na direção de mais representatividade e equidade —pelo menos em Hollywood.