'O alvo é o favelado': Funkeiros comentam casos de associação ao tráfico
"Funkeiro é investigado e/ou preso por associação ao tráfico". Você deve ter esbarrado com uma notícia dessas por aí nos últimos tempos. Na última semana, por exemplo, a Polícia Civil do Rio de Janeiro pediu a prisão do MC Negão da BL, MC Poze do Rodo e de outras 12 pessoas por, entre outros crimes, associação ao tráfico.
Mas o que significa ser associado ao crime de tráfico? E por que funkeiros —como o emblemático caso de Rennan da Penha— são constantemente denunciados por esse crime?
Primeiro, vamos deixar claro o que diz a letra fria da lei antidrogas:
Art 35º
Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos no art 33.
E o que diz o artigo anterior?
Art 33º
Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Interpretando a lei
O advogado criminalista Joel Luiz Costa, coordenador executivo do Instituto Defesa da População Negra, explica que o crime de associação ao tráfico é caracterizado quando a pessoa contribui para o comércio de drogas de qualquer forma.
Ele critica a lei por ser vaga e a classifica como uma "carta branca" para denunciar jovens negros.
"Os MCs são uma espécie de bode expiatório do momento para que se mantenha um processo de criminalização da cultura produzida por pessoas negras. Como já aconteceu com a capoeira, o samba, as religiões de matrizes africanas".
O estado se vale de mecanismos legais para controle dos corpos negros. A lei é para todos, mas o exercício dela é direcionado.
Joel Luiz Costa
MC Leonardo, representante da Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), trabalha há mais de duas décadas contra a discriminação do gênero. Ele afirma que, mesmo com avanços, o estigma do "funkeiro traficante" continua.
"Associar funkeiro ao tráfico de drogas não é novidade, isso aconteceu nos anos 1990, por exemplo, com o Rômulo Costa [fundador da Furacão 2000]. A lei de associação ao tráfico, sim, é nova, e é muito mal explicada. Ela abre brecha para o acusador fazer o que der na cabeça".
O Estado sempre procurou uma maneira de criminalizar o funk. Tentaram impedir que os bailes fossem realizados, com uma lei exigindo coisas absurdas. Como não colou, vão inventando coisas novas.
MC Leonardo
A lei citada por Leonardo é a lei n.º 5265, de 18 de junho de 2008, que dispunha de diversos pré-requisitos para realização de bailes funk no Rio de Janeiro, como autorização prévia pela polícia, CNPJ do organizador, além de detector de metais e câmeras de seguranças no local do evento.
Após críticas de representantes do setor cultural, a lei foi revogada em 2009.
Histórico recente
Dois casos recentes chamaram a atenção: a prisão do DJ Rennan da Penha em 2019 e a investigação e pedido de prisão contra os MCs Poze do Rodo e Negão da BL no último dia 2 de março.
Rennan da Penha foi condenado em segunda instância a seis anos de prisão por associação ao tráfico. Segundo a denúncia do Ministério Público do Rio de Janeiro, o DJ atuava como olheiro do tráfico e, durante o baile, avisava sobre a chegada da polícia via WhatsApp ou pelo microfone.
Durante as investigações, uma testemunha depôs a favor de Rennan dizendo que comunicações via aplicativo de mensagem são comuns entre moradores.
Na denúncia do MP-RJ contra o DJ, uma das provas era um vídeo que mostrava ele abraçando um traficante local, sugerindo uma relação próxima entre ambos. Joel faz uma relação com o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, condenado a mais de 300 anos por crimes de corrupção.
Do ponto de vista da materialização da conduta, o crime em questão é muito vago. Tudo pode ser associação ao tráfico. Quem abraçou e manteve contato com o governador durante seus anos de mandato também estava associado a sua organização criminosa?
Joel Luiz Costa
No último dia 2 de março, a Polícia Civil do Rio de Janeiro pediu a prisão dos MCs Poze do Rodo e Negão da BL, além de outras 12 pessoas, pelos crimes de infração de medida sanitária preventiva e associação ao tráfico.
Segundo a investigação da polícia, os autores realizaram bailes organizados por traficantes locais, durante a pandemia do novo coronavírus, colocando a saúde dos moradores em risco.
"Nós queremos parar com as festas, porque é uma fonte de renda pro tráfico, uma vez que é ele que fica responsável, ele que autoriza", disse o delegado Pablo Sartori, titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática.
É claro que esse tipo de investigação e denuncia é porque o funk é coisa de preto e feito na favela. O alvo é o favelado. Alguém acredita que isso aconteceria em outro espaço da sociedade brasileira?
MC Leonardo
A dinâmica dos bailes
Organizadores de bailes funk ouvidos por Splash dizem que não mantêm nenhum tipo de relação com traficantes para realização dos bailes. Sobre alvarás e autorizações, eles relatam que existe uma dificuldade em dialogar com o poder público.
O custo de produção de um baile é de cerca de R$ 5 mil —contando gastos com equipamento e montagem de estrutura. Os cachês dos artistas costumam variar muito com a disponibilidade e relevância de cada um. Alguns chegam a se apresentar gratuitamente.
Agora, se o traficante vai [no baile] porque gosta da música e o evento é num espaço público onde ele é o cara, já que o poder público pouco se importa com o que acontece ali no dia-a-dia, o que a gente vai fazer? Se ele gosta do artista e sobe no palco, acha que a gente vai impedir?
Produtor de bailes funk que preferiu não se identificar
DJ Polyvox, um dos organizadores do baile da Nova Holanda, na Zona Norte da capital fluminense, diz que há anos os bailes são organizados por equipes de som ou associações de bairro.
"Eu, por exemplo, só vou para tocar, fazer meu trabalho de artista. Os bailes que participo e boa parte dos que conheço são pagos por quem organiza, que é o pessoal das barracas, das associações".
Não sei se o traficante ganha dinheiro [com os bailes], quem eu tenho certeza que ganha são os donos das barracas, o dono do bar, os profissionais que montam as estruturas, os próprios artistas. Tem muita gente honesta envolvida nessa roda gigante.
DJ Polyvox
Já MC Leonardo reforça que boa parte das favelas do Rio de Janeiro é dominada por organizações criminosas.
"Se juntar 10 ou 20 barraqueiros, já é possível fazer um evento. Um baile funk tem um custo barato e um grande retorno financeiro. Além disso, todos os envolvidos são favelados, todo mundo se conhece".
Falam de autorização do tráfico para realizar baile. É óbvio. Nas favelas, precisa de autorização para abrir um comércio, uma igreja, realizar qualquer evento grande, com baile não ia ser diferente. E a culpa é do Estado, que negligenciou a situação a tal ponto que precisamos dessa autorização.
MC Leonardo
Por que o funk?
Polyvox diz que "só o preconceito e o racismo" explicam a associação de funkeiros com o tráfico por parte da polícia.
Se eu, por tocar num baile X ou cantar uma música Y, estiver automaticamente ajudando o traficante a vender mais, é o fim do mundo. Imagina se toda festa onde tiver droga rolando o artista que está lá fazendo o seu trabalho for preso ou falarem que ele está se associando ao tráfico?
DJ Polyvox
Há disputas pelo jovem - para evitar que ele entre no tráfico. Mas criminalizam o que ele ouve, o que ele produz. Criminalizam a juventude pela questão do funk. Se o Estado disser que não está disputando a juventude, ele está no país errado. Não se pode criminalizar.
MC Leonardo
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