'Medida Provisória': Filme de Lázaro é baseado em peça de ficção distópica
"Medida Provisória", filme dirigido por Lázaro Ramos, tornou-se alvo de ataques por parte de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, que acusou a obra de fazer críticas ao presidente Jair Bolsonaro. No entanto, a história do filme é baseada em uma trama de ficção distópica, que imagina um futuro alternativo.
'Namíbia, Não!'
É o nome da peça que inspirou o filme. Escrita pelo ator e dramaturgo Aldri Anunciação, ela foi montada pela primeira vez em 2011, com direção de Lázaro Ramos. O espetáculo estreou em Salvador, e tornou-se a peça de maior público na cidade naquele ano, com 20 mil espectadores.
A montagem acabou indicada nas categorias melhor espetáculo, melhor direção e melhor texto na edição 2011 do Prêmio Braskem de Teatro da Bahia. Saiu premiada na última.
Em 2013, a obra rendeu também a Aldri Anunciação um Prêmio Jabuti, considerado o mais importante da literatura no país.
A história
Splash ainda não assistiu ao filme, que por enquanto só estreou em festivais de cinema (mais sobre isso abaixo). Mas fomos ler "Namíbia, Não!" para entender sua história.
A trama gira em torno de dois primos que dividem um apartamento, Antonio e André. Os dois, negros, são surpreendidos quando o governo institui uma medida provisória que determina que todos os cidadãos com "melanina acentuada" —palavras do livro— sejam enviados para a África.
Nesse universo, a medida radical é uma resposta do governo a um pedido de reparação que indenizaria a população negra pelo período de escravidão, custando bilhões aos cofres públicos. Para forçar o cumprimento da MP, as pessoas de "melanina acentuada" são capturadas pela polícia nas ruas, e o governo corta o acesso delas a meios de comunicação como telefone e internet.
Antonio e André permanecem em casa, já que a polícia não pode entrar no domicílio para capturá-los, e tentam acompanhar os acontecimentos como podem. E, spoiler: na obra, até Glória Maria é levada, no momento em que dava uma entrevista.
Sobre a época em que a obra se passa: o texto da peça foi finalizado em 2011, mesmo ano em que foi realizada a primeira montagem. O autor escreve que a ação deve acontecer cinco anos à frente do período em que a peça está em cartaz. Nesse caso, seria 2016. Não há, na obra, indicação de quem estaria no comando do Brasil naquele momento —mas há referência à eleição do presidente norte-americano Barack Obama, ocorrida em 2008.
E o filme?
Pela sinopse oficial, o filme parece seguir uma linha narrativa similar, mas conferindo mais espaço a Capitú, namorada de Antonio, que, na peça, é apenas mencionada:
A ficção se passa num Brasil do futuro em que uma medida de reparação social afeta diretamente a vida de uma família. São eles o jovem casal formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch) e o primo, o expansivo jornalista André (Seu Jorge), que, de favor, mora na casa da dupla. Certo dia uma medida de reparação financeira pelos tempos de escravidão no Brasil é proposta e é respondida com outra medida. Com essa novidade, o casal acaba separado sem saber se poderá se reencontrar.
O que disse o presidente da Palmares
No Twitter, Sérgio Camargo disse que o filme "acusa o governo Bolsonaro de crime de racismo —deportar todos os cidadãos negros para a África".
No entanto, em declaração enviada ao UOL no último sábado, Lázaro Ramos reforçou o caráter ficcional da obra, comparando-a a outras produções distópicas (ou seja, que imaginam um futuro sombrio), como as séries "Black Mirror" e "The Handmaid's Tale". Esta última, por exemplo, imagina um futuro em que um governo totalitário tira todos os direitos das mulheres americanas.
Camargo ainda afirmou que o filme foi "bancado com recursos públicos". De acordo com a assessoria do longa, ele "foi feito com base nas regras vigentes à época da Ancine —com base no Artigo 3A, fundo setorial e 1A, além de merchandising".
No site da Ancine, consta que o filme captou R$ 4,2 milhões, de R$ 7,4 mi aprovados. A informação é de março de 2019, ano em que o filme foi gravado.
Mas o que significam esses artigos?
- O Fundo Setorial do Audiovisual é formado com base em recursos oriundos do orçamento da União, principalmente da arrecadação da Condecine (taxa paga pela veiculação de conteúdos audiovisuais) e de receitas de concessões e permissões, como o Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações)
- O artigo 1A da Lei do Audiovisual, por sua vez, permite que os patrocinadores de produções audiovisuais deduzam as quantias do imposto de renda devido, desde que os projetos tenham sido devidamente aprovados pela Ancine.
- Já o artigo 3A estabelece que os detentores dos direitos de obras audiovisuais "poderão beneficiar-se de abatimento de 70% do imposto devido, desde que invistam no desenvolvimento de projetos de produção de obras cinematográficas brasileira de longa-metragem de produção independente e na coprodução de obras cinematográficas e videofonográficas brasileiras de produção independente de curta, média e longas-metragens, documentários, telefilmes e minisséries".
Outros alvos de Camargo
Vale lembrar que esta não é a primeira vez que Sérgio Camargo faz ataques à classe artística. Em 2020, ele afirmou que Alcione era "barraqueira" e que sua música era "insuportável" e afirmou que Preta Gil —assim como Marina Silva e Jean Willys— "se declara preta por conveniência política". Ele também já disse, no passado, que a música de Mano Brown "não tem valor" e se opôs ao movimento negro.
Já dá para ver o filme?
Ainda não. A estreia de "Medida Provisória" por aqui está marcada para o segundo semestre. Desde 2020, o filme circula por festivais internacionais —mas muitos desses festivais, apesar de ocorrerem virtualmente, têm limitado o acesso do público aos filmes, geralmente com restrições de localização.
Entre a crítica especializada, o filme tem sido bem recebido. No ano passado, Lázaro Ramos recebeu o prêmio de melhor roteiro no Indie Memphis Film Festival.
A produção também recebeu boas críticas em sua passagem recente pelo SXSW, evento que acontece tradicionalmente no Texas. Uma delas, da "LA Weekly", definiu o longa como "o filme mais apaixonado, inovador e inteligente" visto pelo crítico Asher Luberto no festival.
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